Ao perceber que era difícil não entrar na lingüística, uma vez que a descoberta do inconsciente requeria um mergulho nas águas da linguagem, Lacan parafraseia Jackobson dizendo “tudo que é da linguagem dependeria da lingüística, quer dizer, em último termo, do lingüista” (Lacan, 1972-73, p. 25), homenageando-o em presença do próprio. Propõe então deixar o domínio de Jackoson reservado, passando a denominar linguisteria tudo que se refere à fundação do sujeito enquanto conceito renovado e subvertido por Freud.
Tal qual o dizer de Lacan de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, a linguagem do sujeito inconsciente é do campo da linguisteria: uma linguagem entremeada pelas afetações do sujeito inconsciente. “Que se diga fica esquecido detrás do que se diz no que se ouve” (Id., p. 26), ou seja, isso fala detrás do que se diz. “Se o significante participa e edifica a estrutura, um sistema simbólico, resta sempre algo de inassimilável ao significante, que está na esfera do real: o sujeito” (Peixoto, 2003, p. 34).
Enquanto a linguística ocupa-se com o dito, a psicanálise ocupa-se dos dizeres esquecidos. Se é através do que é dito que se enuncia o dizer, “... é pelas conseqüências do dito que se julga o dizer. Mas o que se faz do dito resta aberto” (Ibid., p. 26), ou seja, a significação não se fecha em um sentido para Lacan. E o inconsciente evidencia-se, por meio da linguagem expressa pelo falante, ao afetá-la pelas emergências do sujeito do inconsciente - isso que fala por trás da linguagem do linguista.
Linguisteria, um neologismo lacaniano, é a junção entre as palavras linguagem e histeria, o que evidencia que a linguagem do inconsciente, através da qual se expressa esse sujeito, é da ordem do sintoma histérico. É uma alusão a ser esta linguagem do inconsciente uma espécie de fenômeno conversivo, que, como um sintoma histérico, fala por si só. Linguisteria é uma espécie de “língua” inscrita e enraizada no corpo do falante, uma incrustação de significantes no corpo.
“A linguisteria é uma espécie de lingüística da sintomática histérica, é um estudo de uma linguagem conversiva – uma linguagem que é falada pelo sintoma enquanto inscrição corporal, de um real que insiste, na interdição do desejo, em uma castração por simbolizar” (Peixoto, 2003, p. 45). |
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Esta “linguagem conversiva” se faz por conversões histéricas, ou seja: o sintoma é convertido em afetação física no corpo, causando paralisias, dores, espasmos, “convulsões”.
Para Lacan o sintoma se dissolve inteiramente numa análise da linguagem ao se dar ouvidos ao que ele quer dizer, para que se venha se libertar, pela fala, este sintoma. Apesar desta linguagem do inconsciente não ser a língua dos linguistas, ela se faz nessa língua, como um sistema universal que atravessa as línguas constituídas.
“Para a psicopatologia psicanalítica, o próprio corpo fala. Recorde-se que Freud fundou a psicanálise a partir dos sintomas histéricos que ele soube ver como ‘corpos falantes’. O sintoma corporal é sobredeterminado por uma rede simbólica complexa, por uma linguagem cujas leis sintácticas é preciso descobrir para se resolver o sintoma” (Kristeva, 1969, p. 312). |
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Dora e a dor
Em uma pequena passagem final do famoso caso clínico Dora, Freud (1901) relata que ela retorna a procurá-lo após uma breve interrupção de seu tratamento por conta de uma nevralgia na face direita que a incomodava diariamente, por quinze dias sucessivos. Indagada se há quinze dias houvera lido a notícia de que ele havia sido nomeado professor da Universidade (em março de 1902) ela lhe confirma que lera a notícia. Freud então decifra o sintoma de sua pretensa nevralgia facial como uma autopunição pelo remorso de haver esbofeteado Herr K. (o marido da amante de seu pai, que lhe havia feito uma proposta amorosa) e ter transferido seus sentimentos de vingança contra ele, Freud. O sintoma participou da linguagem substituindo uma cena esquecida, destituída de afeto, e que deste modo não portava, aparentemente, qualquer significação. O remorso de Dora falava mais alto, doendo-lhe no rosto, apesar de ter o ar de nada ter a ver com o que lhe causava.
Como pode o afeto se alocar no corpo, fazendo-o dialogar com o Outro? O afeto não é o recalcado, explica Lacan.
“... o afeto, pelo fato do recalque, é efetivamente deslocado, não identificado, não demarcado em suas raízes – ele se esquiva.
Eis o que se constitui o essencial do recalque. Não é que o afeto seja suprimido, mas sim deslocado, e fica irreconhecível” (Lacan, 1969-70, p. 136). |
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O real do corpo, ainda que perpassado de linguagem em sua fisiologia corporal - que deste modo o reveste de artifícios corporais -, responde ao mundo simbólico-cultural, como participante deste, pelo sintoma do falante. “É um corpo pulsional, produzido no acossamento do Real, onde habita o sujeito. O sujeito é advindo do Real, comparecendo na suspensão da linguagem, como pulsão” (Peixoto, 2003, p. 108).
Lembremos das lições freudianas de que a pulsão é um representante que está na fronteira entre o somático e o psíquico. É neste corpo falante que a pulsão se faz representar.
O significante é “o Erinnerungssymbol, símbolo mnêmico, do qual sabemos como ele se enraíza na materialidade do corpo” (Arrivé, 1999, p. 91). Sintoma e significante são símbolos mnêmicos que se inscrevem na “areia da carne” (Lacan, 1953, p. 282), participando da linguagem do falante pela ambiguidade semântica.
Freud em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905) afirma que os sintomas histéricos são transcrições de desejos, emocionalmente carregados de energia libidinosa, que foram impedidos de obter descarga, mas que, no estado de inconsciência, lutam por obter expressão, e que, na histeria, encontram expressão nos fenômenos somáticos, isto é, nos processos conversivos histéricos.
Quando Lacan afirma que não sabemos o que é estar vivo a não ser por um corpo que goza, lembramos de Freud quando diz que só tomamos ciência do corpo quando ele adoece, quando dói. A não ser por isso, dele sabemos somente aquilo que pulsa, fonte que é da pulsão. E a pulsão é o representante psíquico do que advém da fonte somática, significante que se inscreve no real do corpo.
“... o significante se situa no nível da substância gozante ... é a causa do gozo. Sem significante, como mesmo abordar aquela parte do corpo? Como, sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a causa material? ... o significante é aquilo que faz alto ao gozo” (Lacan, 1972-73, p. 36). |
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Desta forma, o sintoma que dá corpo ao gozo histérico, misto de dor e satisfação, exerce a função de significante na linguagem do falante. Esta linguagem falada é entremeada pelas aparições evanescentes do sujeito do inconsciente, justo por ser afetada e sintomatizada pela histerização que se instala pela alienação simbólica do real do corpo. Na escuta psicanalítica podemos identificar este sujeito nas enunciações sob a fala do paciente, nos sonhos, chistes, sintomas e falhas sintomáticas.
Como um hieróglifo, o corpo do falante é incrustado de cenas, significantes inscritos na “areia da carne”.
Os hieróglifos eram, a princípio, uma escrita feita de imagens escavadas na pedra e representavam tanto a palavra quanto o significado delas nas antigas civilizações, como a dos Egípcios e dos Maias. Supõe-se que a lógica estava na seqüência dos símbolos, e não na abstração em si.
Como os hieróglifos, a linguagem do inconsciente é feita de cenas. São estas cenas recalcadas, encobertas por um discurso lógico racional, que se enunciam na forma de linguisteria nas ambigüidades e equivocidades do sentido.
Do cours ao discurso
A operação de incorporação de uma primeira marcação significante, o S1, para o sujeito, encontra fundamentação na teoria do valor de Saussure. Esta teoria permite que se distinga a implantação de uma matriz do Simbólico, do S2, no corpo, que o antecede e possibilita a articulação de significantes.
Nesta proposição da teoria saussuriana qualquer elemento simbólico só se define pelas relações de vizinhança, antes mesmo que estes elementos sejam substituídos por seres ou coisas.
Na fonologia Jakobsoniana, Lacan encontra bases para afirmar que o significante se encarna no fonema, apesar de não poder limitar-se a esse suporte fonemático: “...unidade (forma abstrata) elementar da língua, feixe de traços distintivos que instaura a ordem significante como repetição, diferença e negatividade”1 (Santaella, s/d).
E para fundamentar suas hipóteses, Lacan (1972) lança mão de um outro Saussure: o dos anagramas. Quando meditava e fazia anotações sobre os textos védicos e saturninos da poesia sagrada da Índia e de Roma, Saussure acabou por rascunhar uma teoria sobre os anagramas, na tentativa de ver “se não haveria um nome próprio disseminado no interior desses textos que fosse, ao mesmo tempo, o destinatário e o sentido fundamental da mensagem” (Dosse, 1993, p. 72).
Arrivé (1999) aponta que Lacan encontra um ponto de interlocução possível entre Freud e Saussure nos anagramas do último, que via nos versos saturninos “as mais estranhas pontuações da escrita”. Nos seus anagramas, Saussure observa a insistência repetitiva das letras de uma palavra numa sentença. “Saussure suspeitava do caráter, intencional ou não, dos elementos anagramatizados, como se a ele faltasse o saber sobre o inconsciente freudiano” (Peixoto, 2003, p. 31).
Chegou-se a dizer que havia aí um segundo Saussure, que buscava entender se havia algo sob a linguagem: “uma linguagem sob a linguagem, de uma codificação consciente ou inconsciente das palavras sob as palavras, uma busca de estruturas latentes das quais não existe o menor traço no CLG” (Dosse, 1993, p. 72).
Lacan traz à luz os anagramas de Saussure para defender seu ponto de vista de que a relação do significante com o significado, na verdade, não é arbitrária como Saussure teria afirmado anteriormente (1916) pois:
“... o que passa por arbitrário é que os efeitos de significado tem o ar de nada terem a ver com o que os causa.
Só que, se eles têm o ar de nada terem a ver com o que os causa, é porque a gente espera que aquilo que os causa tenha certa relação com o real...” (Lacan, 1972-73, p. 30-31). |
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Para Lacan o significante não tem significado, não tem significação inerente, mas provoca a produção de significação. “... a significância é algo que se abre em leque, se me permitem o termo, do provérbio à locução” (Lacan, 1972-73, p. 30). Assim, podemos entender a afirmativa de Lacan (1957) que diz que nenhuma significação se sustenta senão pela remissão a outra significação.
Para o lingüista o signo é a unidade mínima da língua, que congrega significado (um conceito) e significante (uma imagem acústica), não uma coisa e um nome. Mas são os esclarecimentos que a Semiótica de Pierce traz, acerca do signo, que se mostraram indispensáveis para que se compreendesse neles o lugar do Real:
“Os efeitos de significado têm o ar de nada terem a ver com o que os causa. Isto quer dizer que as referências, as coisas que o significante serve para aproximar, restam justamente aproximativas – macroscópicas, por exemplo” (Lacan, 1972-73, p. 31). |
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Faz falta que o significado tenha relação com o referente, com a coisa. De outra forma dito, o Real é inacessível ao simbólico, o que não ocorre nem mesmo por aproximação. A barra que separa o significante do significado é intransponível, é uma barreira resistente à significação e o significado desliza sob o significante. Algo escapa na aproximação do significante ao significado e, esta coisa que escapa é a coisa Real.
Para Lacan (1972), o que faz haver signo, é o amor, que liga o significante ao significado, o que faz sentido para alguém (outra referência lacaniana ao signo da Semiótica Pierciana). O signo é o ponto de basta onde se amarram, momentaneamente, o significante e o significado, causando efeito de sentido, num raro momento de pacificação amorosa, onde o desejo, por um fio, se estanca.
Mas o desejo triunfa, insatisfeito, na linguisteria, deixando à mostra o gozo do Outro: “O que não é signo do amor é o gozo do Outro, o do Outro sexo e, eu comentava, do corpo que o simboliza” (Id., p. 28).
A linguística acaba por ser insustentável por não haver, para a linguagem, o objeto referente, para sempre perdido no real. Na linguagem, o significante remete a outro significante, ou seja, metonimicamente, vai deslizando sem o paradeiro do signo, já que o objeto está perdido no real. O que se produz, entre um significante e outro, são efeitos de significância, numa referência metafórica ao objeto.
Lacan, reportando-se a poesia A Uma Razão de Arthur Rimbaud (1854-1891) diz que “O amor, neste texto, é o signo, apontado como tal, de que se troca de razão, e é por isso que o poeta se dirige a essa razão. Mudamos de razão, quer dizer – mudamos de discurso” (Lacan, 1972-73, p. 26).
O discurso amoroso é onde, de forma delirante, tudo faz sentido e a significância é o que resulta em efeito de significado.
Ao contrário, não é de amor que a linguisteria é feita, uma vez que ela se faz na ausência de signo. A linguisteria se faz nas pontificações, no discurso, de um sujeito do inconsciente, dividido, advindo do Real.
A sintomatização histérica é o advento do sujeito do inconsciente no discurso dizendo algo interdito, donde advém o sujeito do inconsciente na forma de lapsos, chistes, sonhos ou sintomas.
Então, resta o discurso ao falante, que, em usos e frutos de uma fala gozoza, desliza sem paradeiro, pela rede infinita de significantes.
A histérica, que a todo falante habita, está a mover-se, com seu desejo insatisfeito, pelo desejo de saber endereçado ao significante mestre. E o discurso da histérica é o que resta ao falante, a partir da operação subjetivante de inserção do corpo na ordem simbólica, tornando-o um corpo pulsional. É um sujeito dividido que dirige-se ao significante mestre para saber de sua verdade, recalcando o saber do Outro, gozo do Outro, disjunto da verdade do objeto a.
Nota
1. Ver Jackobson, 1967.
Referências bibliográficas
ARRIVÉ, M. Linguagem e Psicanálise, Lingüística e Inconsciente – Freud, Saussure, Pichon, Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
DOSSE, F. História do estruturalismo. I. O campos do signo, 1945/1966. São Paulo: Ensaio, 1993.
FREUD, S. (1901) Fragmento da análise de um caso de histeria. ESB das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972.
_______. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, in ESB das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972.
LACAN, J. (1969-70) O Seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
_______. (1972-73) O Seminário. Livro 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1985.
JACKOBSON, R. (1967) Lingüística e comunicação. 20ª Ed., São Paulo: Cultrix, 1995.
KRISTEVA, J. História da linguagem. Coleção Signos, 6. Lisboa: Edições 70, [s.d.] (original francesa: 1969).
PEIXOTO, E. V. (2003) A linguagem em seus efeitos constitutivos do sujeito: Uma teoria psicanalítica sobre a linguagem, esta que estrutura o inconsciente e demarca o lugar do sujeito psíquico. Dissertação de mestrado. Curso de Pós-graduação em Cognição e Linguagem / CCH / UENF. Campos dos Goytacazes-RJ.
SAUSSURE, F. (1916) Curso de Lingüística Geral. 10ª. Ed. São Paulo: Cultrix, [s.d.] (1ª Ed. Bras. 1970).
Referências digitais
SANTAELLA, Lúcia. Semiótica e psicanálise: pontos de partida. Portal Psilacánise. Clínica da cultura. Disponível em: http://www.pucsp.br/psilacanise/html/revista01/18_rev_semiotica_01.htm, Acesso em 27/11/2006.
VORCARO, Angela. Incidência da matriz simbolizante no organismo. Revista Freud-lacan.com. Disponível em: http://www.freud-lacan.com/articles/article.php?url_article=avorcaro031105 , Acesso em 28/11/2006.
Hieróglifos, disponível em http://www.geocities.com/Athens/2506/hier.html Acesso em 27/11/2006.
Texto recebido em: 03/01/2009
Aprovado em: 25/04/2009
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