Sábado, 15 de janeiro de 1944
Minha querida Kitty,
Não há motivo para eu continuar descrevendo todas as nossas brigas e discussões [com os vizinhos] até os mínimos detalhes. Basta dizer que dividimos muitas coisas, como carne, gordura e óleo, e que estamos fritando nossas próprias batatas. Ultimamente comemos um pouco mais de pão de centeio, porque às quatro horas já estamos com tanta fome que mal podemos controlar os roncos no estômago. (...) A guerra vai continuar, independentemente das brigas e do desejo de liberdade e ar puro (...). Acredito que, se eu morar aqui durante muito mais tempo, vou me transformar num pé de feijão velho e seco. E na verdade só quero ser uma adolescente! Sua Anne (Frank, 2007).
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Introdução
A “adolescência” enquanto uma fase intermediária da vida, entre a infância e a fase adulta, é uma construção social. Até o final do século XVIII a adolescência não era percebida como um estágio particular do desenvolvimento humano. O termo adolescência surge, em sua concepção moderna, entre o final do século XVIII e início do século XIX. Até então, a adolescência se confundia com a infância e ambas demarcavam a ideia de dependência socioeconômico-cultural.
Se a adolescência é uma construção social, o termo mais adequado para abordar esse tempo lógico do encontro com o real do sexo talvez seja a puberdade, termo utilizado por Freud. Consideramos a adolescência como uma resposta sintomática do sujeito ao encontro com o real do sexo na puberdade.
Freud (1905) utiliza o termo puberdade descrevendo-a como um segundo tempo da sexualidade. O primeiro ocorre na infância e retrocede ou é detido na latência; e o segundo sobrevém com a puberdade e determina a configuração definitiva da vida sexual. E explica que com a chegada da puberdade introduzem-se as mudanças que levam a vida sexual infantil à sua configuração definitiva. A pulsão na infância era predominantemente autoerótica e na puberdade encontra o objeto sexual. Surge um novo alvo sexual para a conjunção de todas as pulsões parciais: a zona genital.
Assim, com a chegada da puberdade, duas transformações são decisivas, segundo Freud: a subordinação de todas as outras fontes de excitação sexual ao primado das zonas genitais e o processo do encontro do objeto. A normalidade da vida sexual só é assegurada pela exata convergência das duas correntes dirigidas ao objeto sexual e à meta sexual, a de ternura e a sensual: “A primeira destas comporta em si o que resta da primitiva eflorescência infantil da sexualidade. É como a travessia de um túnel perfurado desde ambas as extremidades” (Freud, 1905, p. 195).
Um outro trabalho que o jovem deve fazer é o de separação de seus pais, como ressalta Freud. Ele destaca que na puberdade há o redespertar do Édipo, renovando os conflitos edipianos e as fantasias incestuosas. Ele comenta:
“Contemporaneamente à subjugação e ao repúdio dessas fantasias claramente incestuosas consuma-se uma das realizações psíquicas mais significativas, porém também mais dolorosas, do período da puberdade: o desligamento da autoridade dos pais, unicamente através do qual se cria a oposição, tão importante para o progresso da cultura, entre a nova e a velha gerações” (Freud, 1905, p. 213).
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Há uma reativação do Édipo na puberdade que, diferentemente de sua primeira manifestação na infância, agora tem a marca da interdição. De acordo com Cottet, Freud descreve a puberdade como “[...] um mito, o da conjunção de todas as pulsões parciais em torno da genitalidade sobre um novo objeto após a fase da latência e, portanto, para além do recalcamento” (Cottet, 1996, p. 12). Na puberdade, o desejo sexual, à medida que desperta a antiga corrente, reativa o Édipo. Há uma reativação da escolha do objeto interdito. A diferença com relação à infância é que desta vez é reativada numa época mais além do recalque com esse novo elemento que é a genitalidade. O desejo sexual reativa uma interdição pondo em questão a impossibilidade de uma harmonia entre a pulsão sexual e a corrente terna sobre o mesmo objeto.
Os pais, enquanto modelos de identificação, devem ser substituídos por outras pessoas. Em 1914, em “Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar”, Freud faz algumas considerações sobre a adolescência, marcando em especial o desligamento que o jovem faz do pai e sua substituição pela figura do mestre. Freud explica que é nessa fase do desenvolvimento do jovem que sobrevém seu encontro com o mestre. Ele acrescenta que tudo o que distingue a nova geração, tanto o que é portador de esperança quanto o que choca, tem como condição esse desligamento do pai. Ou seja, a crise do pai faz nascer a nova geração. Nesse movimento, a função de interdição edípica, bem como a abertura à possibilidade do exercício do desejo, ampliam-se para sua concretização no pacto social.
A partir das referências freudianas acima, podemos destacar como principais determinantes da puberdade: as transformações fisiológicas com a consequente maturação genital, o encontro com o outro sexo (que ele chama de encontro com o objeto), o redespertar do Édipo com a necessidade de separação dos pais e a escolha de outras referências de identificação, ou seja, a passagem do pai ao mundo social mais amplo. Assim, no tempo da puberdade, há a exigência de um trabalho psíquico para que o jovem possa fazer essa “passagem” da infância à fase adulta.
O despertar do real do sexo na puberdade
Para Freud a sexualidade humana não é inaugurada na puberdade, mas na infância. No segundo ensaio de seu texto de 1905 o autor demonstra a existência da sexualidade infantil, descreve a fragmentação das pulsões parciais e comprova o caráter normal das exteriorizações sexuais infantis. A vida sexual infantil vai apresentar uma lógica pré-genital organizada como oral e anal. Em 1924 o autor acrescenta a fase fálica. Essa fase se apoia numa zona genital, mas com diferenças com relação à organização genital adulta, pois a criança só reconhece uma classe de órgão sexual: o masculino. Mas não se trata da primazia dos genitais, e sim do falo. A descoberta da diferença entre os sexos (tendo o falo como referência) é fundamental para a constituição da sexualidade.
A separação entre masculino e feminino só ganha significação após a puberdade, e essa distinção será fundamental na sexualidade do adulto. O complexo de Édipo e o complexo de castração marcam a passagem da sexualidade infantil para a vida sexual adulta. Freud formula o complexo de Édipo para afirmar que o desejo inconsciente determina no sujeito uma estrutura ternária, uma rede complexa na qual o sujeito articula o seu desejo ao desejo do par parental. Podemos considerar que, ao escrever o complexo de Édipo, Freud indica uma direção, do mito à estrutura. A impossibilidade do amor incestuoso encaminha o Édipo para a sua destruição. Essa impossibilidade é a castração, enquanto um fato de estrutura. Marca-se a impossibilidade do encontro com o objeto, não há complementaridade. As teorias sexuais infantis constituem o recurso utilizado pela criança no trabalho de velar e desvelar a castração, enquanto impossibilidade estrutural. Há um recalque das fantasias e do desejo incestuoso com a incidência da castração, marcando a entrada da criança na latência. A latência se situa nesse tempo intermediário entre a infância e o despertar da puberdade. Na puberdade existirá a necessidade de distinção sexual e o primado da zona genital irá se firmar. A maturação genital leva ao encontro com o objeto.
Há, portanto, uma constituição da realidade psíquica que se dá em dois tempos: o da infância e o da adolescência. O trabalho psíquico que ocorre na adolescência envolve um segundo tempo desse processo. Para a teoria lacaniana, a subjetividade se constitui a partir do enlaçamento de três dimensões topológicas: o simbólico, o imaginário e o real. O registro simbólico designa a relação do ser falante com o significante; o registro imaginário, a relação do ser falante com a imagem; e o real, com o objeto. O complexo de Édipo é o que amarra os três registros.
O registro simbólico representa, na teoria psicanalítica lacaniana, o lugar do código fundamental da linguagem, o lugar da lei, onde fala a cultura, a voz do grande Outro. A escritura do Outro (com maiúscula) foi adotada por Lacan para mostrar como a relação entre a estrutura simbólica e o sujeito se distingue da relação imaginária do eu e do outro (com minúscula indica o outro imaginário). Lacan, em “O estádio do espelho como formador da função do eu”, chama a atenção para a matriz simbólica em que o eu se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito (Lacan, 1998, p. 97). O acesso ao simbólico tem como efeito “a divisão do sujeito”, ou seja, a perda de uma parte essencial de si mesmo, pois no simbólico o sujeito só pode ser representado.
O sujeito mediatizado pela linguagem está irremediavelmente dividido, pois está excluído da cadeia significante, ao mesmo tempo em que aí é representado. Nomeado no discurso dos pais e deles recebendo um prenome, o sujeito entra no circuito da troca e, nessa troca, algo se perde. A condição para a sua aparição na ordem do significante é a sua “morte”, ou a sua “perda”, a sua “divisão”, ou seja, pode-se dizer que ao mesmo tempo em que ele se humaniza através do Outro, o preço a ser pago por essa humanização é a sua alienação a esse Outro, a essa ordem cultural.
Entre o campo do sujeito e o campo do Outro há uma hiância; é nesse intervalo que acontecem as duas operações na relação do sujeito com o Outro. Se a primeira operação é a alienação, como vimos acima, a segunda está situada numa interseção, é a separação. O encontro inaugural com o Outro deixa como marca uma inscrição significante, o S1, um significante sem qualquer sentido. O sentido de S1 será construído retroativamente, a partir de certo sentido, certo saber, o S2. A fundação do sujeito se dá então a partir dessa marca originária vinda do campo do Outro, o S1, e de um significante que pretende dar sentido, o S2. Nem S1 nem S2 dão conta de representar o sujeito integralmente. O sujeito do inconsciente surge no intervalo entre S1 e S2, como $ (Sujeito dividido). Para a psicanálise, não há relação entre S1 e S2, somente uma amarração. O objeto a é o que aponta para aquilo que escapa a qualquer tentativa de recobrir um significante pelo outro, substituindo-o, sem falha. O objeto a é o resto da operação de emergência do sujeito entre S1 e S2, que supostamente taparia nossa falha estrutural.
A separação surge no recobrimento de duas faltas: a que o sujeito encontra no Outro e a que recobre a primeira, quando o sujeito responde à primeira falta com a proposta de seu desaparecimento, sua morte, que permanece na pergunta infantil: “Será que o Outro pode me perder?” Falta um significante no campo do Outro do qual o sujeito do inconsciente depende para se constituir como tal. Então surge a fantasia como resposta e solução para o sujeito diante do enigma do desejo do Outro. Por meio da fantasia, o sujeito pode evitar o encontro com o real faltoso, com a falta de objeto, com o que não está inscrito. Com a fantasia, onde há furo coloca-se objeto a fantasioso. Quando há a instalação da fantasia inconsciente fundamental, há a instalação dos três registros: o real, o simbólico e o imaginário.
O imaginário para a psicanálise envolve não só as imagens e a imaginação, como também o registro da identificação especular, onde há a relação do sujeito com as identificações formadoras do eu. Lacan descreve o estádio do espelho como uma identificação, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem: “O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação” (Lacan, 1998, p. 100). Lacan, retomando Freud, diz que no princípio não há unidade, ou seja, inicialmente o corpo do indivíduo é fragmentado pelas pulsões autoeróticas, ou pulsões parciais, que ainda não se organizaram em torno de um eu. As pulsões autoeróticas convergem para a imagem do corpo tomado pelo objeto: imagem com a qual o sujeito se identifica para constituir seu eu. Essa imagem é o eu ideal formado pela imagem do outro, que dará a unidade que constitui o eu, ou seja, a criança se identifica com aquela imagem refletida no espelho (ou imagem do outro), alcançando uma “identidade alienante” que a acompanhará no seu desenvolvimento. Essa unidade ou “armadura”, esse “eu”, é antes de tudo “um eu corporal” (Freud, 1914b). A percepção visual do corpo constitui a base do imaginário e da identificação especular. A unidade do eu é, portanto, imaginária.
No entanto, se o espelho fornece ao sujeito uma unidade corporal, que o organiza, conferindo-lhe uma gestalt, um eu ideal, essa imagem é sustentada pelo olhar de um representante do Outro. O sujeito se vê no espelho através desse ponto simbólico situado fora da imagem, suporte da identificação simbólica ao ideal do eu. Mas, como nem tudo da realidade subjetiva é captado pela imagem, existe sempre algo não especularizável, o objeto fora do espelho. Diante de sua falta a ser, o sujeito se vê impelido a compensar sua incompletude através do recurso às imagens unificadoras do eu. Mas em algum momento ele se depara com a impossibilidade de captar-se totalmente numa imagem. A experiência especular traz como uma de suas importantes consequências a subordinação do sujeito ao significante que o designa, com a consequente perda do objeto. Os objetos pulsionais não se deixam captar pelo espelho, permanecendo como traços no corpo do sujeito. O sujeito tenta recuperar esses objetos mediante a construção de sua fantasia.
A puberdade é um tempo lógico, portanto, no qual o sujeito é convocado a realizar um trabalho psíquico. Há uma ressignificação da sua relação com o corpo. A construção especular do eu feita na infância é perturbada na adolescência. O corpo “púbere”, em transformação, denuncia os pontos de fraqueza da “unidade especular” construída na infância. As perguntas sobre o ser, sobre o sexo, sobre o próprio desejo e o desejo do Outro, surgidas na infância e silenciadas na latência, são redespertadas na adolescência.
A consistência imaginária do Outro é abalada. O Outro aqui é referido ao campo simbólico ao qual o sujeito do inconsciente está remetido. Sua consistência imaginária é abalada nesta fase. O adolescente terá que fazer um intenso trabalho de construção imaginária da realidade, quando o corpo desponta como fundamental ao sujeito. Na reconstrução que o adolescente deve fazer da sua imagem, a questão do olhar é fundamental. O adolescente demanda um olhar que confirme “a nova imagem corporal” como desejável e desejante. O olhar do outro confere ao sujeito um reconhecimento de sua nova condição sexuada.
Mas a imagem do corpo em transformação do adolescente torna-se estranha a ele mesmo, correspondendo à categoria do estranho (Unheimliche), descrita por Freud (1919). O estranho remete ao que é conhecido e familiar, que se tornou alheio ao próprio sujeito. O termo unheimliche, através da partícula negativa um-, põe um limite na ambiguidade de seu provedor heimliche (Portugal, 2006).A raiz de ambos, das Heim (casa, lar), refere-se a tudo o que é íntimo, conhecido e familiar, e de tão íntimo torna-se secreto, estranho, assustador e angustiante. Para Freud o termo refere-se a tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz.
O duplo como figura do estranho, que comumente aparece como imagem especular, torna-se causa de estranheza, quando o corpo familiar vira objeto de angústia. O eu para a psicanálise é sempre imaginário, daí a sua fragilidade e o estatuto de ficção que derivam de uma articulação entre o estranho e o narcisismo. O fundamento do duplo está no momento de cristalização do eu. O espelho, parâmetro de exterioridade, oferece ao sujeito a chance de se ver por inteiro, mas ao preço de se ver como um outro. Nessa relação com o semelhante, a figura que se reflete aparece invertida, impondo uma diferença no registro do idêntico, forçando a alteridade. A própria imagem, que deveria ser o mais conhecido e familiar, vira estranho, sinistro. Surge então a angústia que leva a buscar eliminar o duplo, este rival. O fenômeno do Unheimliche mostra que a mesma imagem da qual o eu depende para se constituir pode se tornar uma ameaça à sua “suposta” integridade. No fenômeno do duplo, há um destacamento da imagem especular, que se apresenta como duplo autônomo, estranho para o sujeito.
Na puberdade, a imagem corporal claudica, há um despedaçamento da imagem, causando estranhamento. A imagem do corpo torna-se estranha ao sujeito. O estranho é o real, que se rompe quando o véu que o recobre é descoberto. O estranho é o impossível a ocultar, é a experiência do real que irrompe, furando a imagem. A experiência do duplo traz à tona a “outra cena”, que nos aliena de nós mesmos, provocando um sentimento de estranheza que nos angustia, exigindo um trabalho de escrita que leve à construção de sentido.
Lacan (1964), no Seminário 11, introduz o olhar como objeto a no lugar do Outro. Na experiência especular existe um ponto cego, uma parte faltante, que corresponde ao que do registro real não é especularizável. O autor diferencia visão e olhar, identificando o olhar com o objeto. O olhar ou o escópico aponta para o real, que é diferenciado da visão ou do especular, que corresponde ao imaginário. A dimensão escópica, apesar de não poder ser vista, dá razão àquilo que se vê (especular). Para Lacan, o segredo do fascínio pela imagem é o encobrimento da falta e, também, o encobrimento do objeto (olhar). O olhar como objeto a é encoberto pela imagem e é o responsável, tanto pelo segredo da beleza, quanto pelo horror da imagem, que causa estranhamento.
O despertar do real do sexo leva o sujeito a um desatar do nó que amarra a estrutura. Se o Complexo de Édipo é uma amarração da estrutura, há na puberdade uma exigência de um novo enodamento. Como o sujeito pode fazer essa amarração? Tornar-se homem ou mulher envolve fazer um trabalho de amarração com os restos do enlace do sujeito ao Outro. Ilustraremos, com o diário de Melissa, o encontro com o real na adolescência e a escrita de um diário operando como uma forma de dizer desse encontro com o feminino.
A construção de um véu no despertar da puberdade: a escrita de uma adolescente
Melissa Panarello, uma adolescente siciliana, publica o diário que escreveu dos 14 aos 16 anos, entre 2000 e 2002. Seu diário, Cem escovadas antes de ir para a cama (2004), revela os seus desejos mais íntimos, o início de sua vida sexual e a busca desenfreada pelo verdadeiro amor, que a leva a oferecer o próprio corpo a quem quer que o solicite. Os conflitos da adolescência e as experiências sexuais são vividos intensamente e descritos minuciosamente em seu diário. O seu texto mistura a escrita sem “pudores” com a escrita poética de uma adolescente que faz uma viagem em busca de “si mesma” e do amor. Se ela se entrega aos excessos carnais, seu prazer convive com a repulsa e a angústia.
Na puberdade a gestalt do corpo muda, assim como a percepção que o jovem passa a ter de si e do meio que o cerca. Melissa observa seu corpo no espelho e descreve em seu diário seu encantamento com a nova forma que começa a se delinear: “Diante do espelho, eu me admiro, extasiada com as formas que vão pouco a pouco se delineando, com os músculos que ganham um contorno mais modelado e seguro, com os seios que começam a aparecer sob as camisetas e se movem suavemente a cada passo” (Panarello, 2004, p. 8).
O jovem, diante das rápidas transformações físicas, desconhece o seu corpo e não sabe dele se servir. Ele então reinveste a imagem especular que o fazia reconhecer-se no outro imaginário. Mas, é exatamente o seu corpo que lhe causa angústia, ele é um estranho. Sua imagem claudica, despedaçando-se: “Sinto meu corpo arrasado e pesado, inacreditavelmente pesado. É como se alguma coisa muito grande tivesse caído em cima de mim e me esmagado. Não me refiro à dor física, mas a uma dor diferente, por dentro” (Panarello, 2004, p. 24).
De acordo com Freud, a forma definitiva normal do corpo é assegurada pela fantasia, por meio da conjunção de duas correntes, a terna e a sensual, em direção ao objeto e ao fim sexual. Nesse desencontro do sujeito com sua imagem especular, imagem que traz em si um ponto de real, surge a angústia, quando se produz um abalo na significação fálica,que de alguma forma sustentava essa imagem. Surge então a pergunta sobre o seu ser. Essa pergunta, insistente, instiga a escrita pessoal, como tentativa de construir uma resposta que lhe sustente: “Mais buscas, não vão acabar até eu encontrar aquele que procuro. Na verdade, não sei bem o que quero. Procura, continua a procurar, Melissa, sempre” (Panarello, 2004, p. 78).
Através da prática sexual promíscua, Melissa busca despertar a paixão do parceiro: “...vou entregar meu corpo a qualquer homem por dois motivos: porque, saboreando-me, talvez ele sinta o sabor da raiva e da amargura e por isso pode sentir um pouco de ternura, e depois porque vai se apaixonar pela minha paixão até não poder mais passar sem ela” (Panarello, 2004, p. 30).
Lacan (1974) vai apontar a adolescência como fornecedora do paradigma da impossibilidade do encontro simétrico e recíproco com o outro. A relação ao outro sexo é contaminada pelo interdito. Lacan desenvolve este ponto de vista em seu “Prefácio a O Despertar da primavera”, de Wedeking”,peça que foi traduzida por François Regnault nos anos 70 e que tinha sido discutida na Sociedade Psicanalítica de Viena em 1907. Na puberdade, há o despertar para a discordância entre o sujeito que surge como produto dividido do recalcamento e o mundo das pulsões. Nesse tempo da puberdade essa dicotomia se faz presente de forma contundente e não permite mais o recurso, utilizado pela criança, de lançar mão do Outro parental para fazer frente a este desencontro entre o sujeito dividido e a pulsão. O Outro parental apresenta-se falho, incapaz de responder à altura dessa exigência. Os ideais vacilam e os adolescentes vão à procura de novos ideais.
É neste período também que o encontro com o outro sexo ganha corpo. É exatamente no momento em que o rapaz satisfaz aos ideais de sua virilidade e a moça se instala na identificação, momento de assunção do desejo, que o encontro fracassa. Há um mal-estar, um impasse na relação sexual. Os desencontros dos primeiros amores são paradigmáticos do impasse da relação sexual. De acordo com Lacan, quando chega a hora do rapaz fazer amor com as moças, é preciso que sonhe com isso, antes disso se ocupar. Em Televisão (2003), retomando o vocabulário da época que qualifica o adolescente de jovem, Lacan observa que sua relação ao sexo é marcada por dois afetos modernos, o tédio e a morosidade:
Se falei de tédio, e até mesmo de morosidade a respeito da abordagem “divina” do amor, como desconhecer que esses dois afetos são denunciados – em falas e até mesmo em atos – em jovens que se entregam a relações sem repressão – o mais incrível sendo que os analistas, em quem eles encontram suas motivações, lhes respondem fazendo birra. Mesmo que as recordações da repressão familiar não fossem verdadeiras, seria preciso inventá-las, e não se deixa de fazê-lo. O mito é isso, a tentativa de dar forma épica ao que se opera da estrutura (Lacan, 2003, p. 530).
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Se não existe a repressão sexual, como adverte Lacan, é necessário criá-la, inventá-la. Assim, o adolescente, ao criar o mito da repressão familiar, dá forma épica ao que se opera na estrutura. De acordo com Cottet (1996), Lacan designa uma espécie de infelicidade do ser no fato dos jovens se devotarem ao exercício de relações sem repressão. Sem fazer uma apologia da repressão, Lacan na verdade busca deduzir a estrutura desse impasse, estrutura que ele referia à lógica, ao menos à aritmética, ao gozo do Um, ideal de uma beatitude na qual o parceiro é reduzido ao semelhante. “Lacan observava a intolerância do adolescente em consagrar o outro como objeto a, em enraizar seu desejo ou sua causa em um objeto que não fosse o semelhante idealizado” (Cottet, 1996, p. 19).
A adolescência pode ser considerada como um “sintoma” da puberdade. Stevens (2004) considera que o termo puberdade tem mais pertinência na clínica do que o termo adolescência. Retomando a tese de Freud de que após a infância certas escolhas são feitas (de objeto e quanto à sexuação), ele ressalta uma terceira escolha, determinada mais cedo na existência e que só vai ter consequências na adolescência, é a eventual escolha da perversão. É a escolha em permanecer em uma pulsão parcial, mas também uma escolha de se colocar a serviço de uma vontade de gozo, de um Outro do gozo, do gozo obscuro. Assim, a puberdade é tomada não só como um tempo de escolha de objeto e de posição quanto à sexuação, mas também como um tempo lógico de escolha de uma possível orientação quanto à perversão.
No momento em que se dá a sua entrada na adolescência, o sujeito ainda não se decidiu totalmente sobre suas escolhas e esse é o momento de se decidir. O autor destaca que a escolha do sintoma e a organização da fantasia se estabelecem extremamente cedo, mas são recolocadas parcialmente na adolescência. Essas escolhas deverão ser recolocadas tanto do lado da fantasia, posta à prova na puberdade, quanto do lado do sintoma. Elas são recolocadas mesmo se a estrutura clínica já está decidida. No entanto, as formas comportamentais, fenomenais e também a forma do sintoma com o sexo vão se encontrar modificadas na puberdade.
Se a puberdade é um dos momentos em que a não-relação sexual aparece para o sujeito, a adolescência, segundo Stevens (2004), é a resposta sintomática que o sujeito vai dar a isso, é o arranjo particular com o qual ele organizará sua existência, sua relação com o mundo e com o gozo. O autor propõe a clínica da adolescência como a clínica do sintoma. Mas se trata de uma resposta individual e como escolha de um sujeito. Na adolescência, há certo despedaçamento do imaginário diante da irrupção do real da puberdade (órgão marcado pelo discurso na ausência de um saber sobre o sexo). Na ausência de um saber, resta a cada um inventar sua própria resposta. Stevens descreve o real da puberdade articulando-o com três definições de real em Lacan: um primeiro conceito de real, articulável na disjunção entre a identificação simbólica e imaginária, disjunção esta acentuada no momento da adolescência em função do despedaçamento da imagem; um segundo conceito de real como aquilo que irrompe, que não tem nome e que vem modificar a imagem, que acontece no tempo do despertar da puberdade; e o real como a não-relação sexual, que faz retorno na puberdade. A adolescência é, pois, a enumeração de uma série de escolhas sintomáticas em relação a esse impossível, que é o real da puberdade.
Diante das exigências que se impõem ao jovem adolescente: passagem do pai à lei social na ampliação do pacto edípico ao pacto social, elaboração do luto dos pais infantis, ressignificação da relação com o corpo, escolha do objeto e da posição sexuais, além da escolha da perversão, a escrita de um diário pode ser um instrumento que possibilita esse trabalho psíquico, ou, a partir das considerações de Stevens (2004), o diário pode ser uma resposta do sujeito, uma escolha sintomática possível ao impossível do encontro com o real, próprio da puberdade.
Mas uma questão que se faz pertinente é compreender por que a prática da escrita do diário é preferencialmente feminina. A psicanálise permite ir além da referência puramente social para explicar a escrita do diário como prática feminina. Para discutir essa questão, apresentaremos, brevemente, o percurso da feminilidade na teoria psicanalítica.
Freud, no terceiro dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), ressalta as transformações fisiológicas que acontecem na puberdade, em função do aparecimento dos caracteres secundários. Para o autor, a singularidade do desenvolvimento sexual feminino se dá por uma “espécie de involução” dos órgãos sexuais masculinos. Além disso, um novo recalcamento deve incidir sobre a atividade clitoriana, fazendo sucumbir ao recalque uma parte da vida sexual masculina das meninas. A menina, para tornar-se mulher, deve então organizar sua sexualidade em torno da vagina. A essência da feminilidade está relacionada à troca de zona erógena. Nos textos posteriores de Freud sobre a feminilidade, o autor define a feminilidade em termos de maternidade. O menino renuncia ao objeto incestuoso pela ameaça de castração e a menina tem a sua entrada no Édipo em função de uma privação real, a ausência de pênis. Freud estabelece três saídas para a mulher, diante da “inveja do pênis”: renúncia, masculinidade e feminilidade. A feminilidade é alcançada pela aceitação de sua condição de privação e por não buscar autoproporcionar-se o substituto fálico; ela o espera de um homem, especialmente sob a forma de um filho. O desejo do pênis então deve ser substituído pelo desejo de um filho do pai, para que se instaure a feminilidade. Esse é o impasse a que Freud chega com relação à feminilidade, pois ele equivale mulher e mãe, não ultrapassando o complexo de masculinidade.
Inicialmente, Lacan retoma essas hipóteses freudianas, acrescentando, entretanto, que, diferente do menino, a menina, ao passar pela fase fálica da castração, não herda o reconhecimento simbólico do pai, a marca de uma filiação. Assim, esse “prejuízo” se traduzirá por uma demanda eterna de reconhecimento dirigida ao pai. Essa posição estabelece a estrutura histérica, ditada pelo ideal fálico. A falta fálica traduz-se, na histérica, num investimento da imagem corporal, como recurso para o “velamento da falta”. Há um deslocamento do pênis que falta para um investimento em “todo o corpo”. A mulher, na ausência do falo, busca “ser o falo”, como tentativa de uma identificação possível. Na ausência de um traço especificamente feminino, a mulher recorre ao significante viril, só lhe restando a saída via “a mascarada”. Assim, o conceito de mascarada apresenta-se como uma saída à impossibilidade da identificação do feminino no plano do significante pela via da ficção fálica. O lugar do feminino permanece vazio e nele só se encontram máscaras. As máscaras funcionam para velar o nada.
Lacan, no entanto, avança em suas teorizações sobre o feminino, afirmando que a mulher não é a mãe. Para o autor, entre a mãe e a mulher existe um hiato. Um filho pode obturar, em parte, a falta fálica na mulher, “mas não é a causa do desejo feminino que está em jogo no corpo-a-corpo sexual” (Soler, 2005, p. 35). Lacan identifica um desejo bem alheio a qualquer busca do “ter o falo”, e que também não é a aspiração a “ser”. Ele se define como equivalente a uma vontade de gozo. Mas um gozo que não é limitado ao gozo fálico. O gozo fálico é o gozo do Um, localizado, limitado e fora do corpo. É resultado da castração, sendo, pois, aquele que a castração deixa ao ser falante. Ele não se limita ao registro do erotismo, sendo subjacente às conquistas e realizações do sujeito no campo da realidade, constituindo a “substância de todas as satisfações capitalizáveis” (Soler, 2005, p. 37). No entanto, o outro gozo é um gozo que não cai sobre a barra do significante, ele é foracluído do simbólico, “fora do inconsciente”. Deste gozo, o inconsciente nada sabe. Ele manifesta-se na experiência, mas não se traduz em termos de saber. Esse é o gozo real. Ele está mais além do falo, é desmedido e o sujeito se vê “ultrapassado por ele”. Esse é o gozo d’A Mulher. Por ser heterogêneo à estrutura da linguagem, esse gozo não é identificatório.
À famosa interrogação de Freud: “Que quer a mulher?”, Lacan responde então: ela quer gozar. Já a histérica, quer um mais-ser. O gozo fálico tem valor identificatório para o homem, por isso eles se vangloriam de seus desempenhos fálicos. Já na mulher, apesar do gozo fálico não lhe ser proibido, sair-se tão bem quanto os homens não faz dela uma mulher. Longe de exibir seu gozo, o que ela faz é escondê-lo. Daí os seus esforços para se identificar pelo amor. Na impossibilidade de ser “A Mulher”, resta ser “uma mulher”, eleita de um homem. Ela toma emprestado o “um” do Outro para se identificar, para se certificar de que não é uma qualquer, mas uma mulher escolhida. “Assim, é compreensível que as mulheres, histéricas ou não, mais que os homens, amem o amor” (Soler, 2005, p. 57).
Santiago, em: “Psicose e surto na adolescência: por que os adolescentes surtam tanto?” (2003),retomando Freud, destaca que na passagem da infância para a adolescência algo se mantém intransponível, que é a perversão polimorfa. Ela é lançada no momento em que o sujeito deve identificar-se com o ideal de seu sexo. A fantasia é um recurso que o neurótico construiu e deve ajustar quando é chegado o momento do encontro sexual, mas é também um exílio para não ter que se haver com a sexualidade, como o que “faz buraco no real”. Segundo a autora, esse mal-entendido, apesar de estar marcado para os dois sexos, apresenta especificidades no homem e na mulher, que não fazem amor na mesma proporção. Enquanto a puberdade masculina se decifra como um sintoma obsessivo, a puberdade na moça responde ao modelo histérico, cujo efeito principal, uma vez passado o estupor e a angústia, é o desgosto da sexualidade. Esse desgosto sanciona a difícil assunção da feminilidade a essa fase de reativação do penisneid.
Na adolescência, a passagem do corpo de menina ao corpo de mulher leva ao confronto com a questão: o que quer uma mulher? Na ausência de um significante feminino, a adolescente constrói um semblante, velando a falta fálica. É nesse sentido que podemos situar a escrita de um diário para a menina. O ressentimento pela ausência de um significante feminino e a necessidade de se constituir um artifício fálico para recobrir a falta levam muitos adolescentes a buscar a solução histérica.
A escrita pode apresentar-se nesse momento como alguma coisa que visa à construção de um véu, como um semblante, que recobre o vazio. A tentativa de construção de “um feminino” via um “artifício fálico” supõe o olhar do outro. Nos escritos dos diários íntimos de adolescentes acompanhamos todo um jogo de se mostrar e de se ocultar, na tentativa de elaboração de um íntimo que se subtrai e, ao mesmo tempo, se oferece ao olhar do outro, num convite ao desvelamento. Podemos pensar na irrupção do feminino como algo além do registro fálico, e a histerização como defesa contra esse encontro. Essa solução não é necessariamente da mulher, mas pode ser comum aos dois sexos. Todo adolescente, homem ou mulher, é confrontado com o feminino, no sentido da indeterminação, da impossibilidade de uma representação única para o desejo.
Alguns adolescentes buscam certo isolamento social, um espaço íntimo, para tentar construir uma significação diante desse encontro com o real. Pillippe Lacadée, em O despertar e o exílio (2007),descreve a busca que alguns adolescentes fazem de um exílio particular. Como o autor observa, o adolescente é aquele que se encontra particularmente confrontado ao mal entendido da linguagem e ao real da sexualidade. A adolescência é um tempo que pode dar ao sujeito o sentimento de uma desconformidade com o simbólico. O adolescente está, em sua vida, em um tempo de corte com o seu meio familiar, “um tempo de separação da criança ideal”, separação que traz a incerteza identificatória e sofrimentos mais ou menos acentuados, mas traz também pedaços de real que condicionam sua realidade.
Esse corte com o meio familiar aparece na maioria dos diários de adolescentes, como pode ser ilustrado pelo diário de Melissa, por suas críticas aos pais: “O problema é que os meus pais só veem aquilo que eles estão a fim de ver. Quando estão animados, participam das minhas alegrias e se mostram afetuosos e compreensivos. Quando estão tristes, ficam afastados e me evitam como se eu tivesse uma doença contagiosa” (Panarello, 2004, p. 20).
Esse sentimento intenso de uma desconformidade com o simbólico pode conduzir o adolescente, portanto, a um exílio particular. Partindo de seu exílio da infância a este da língua, o adolescente pode experimentar um “desregramento de todos os sentidos”. Segundo Lacadée (2007), o adolescente vive momentos delicados de ruptura, de contradição, onde a infância, adolescência e loucura se aproximam e se margeiam em um fora do discurso que conduz a certas rupturas do laço social, como pode ser observado na escrita de Melissa:
“Quando estou em casa, entro na Internet. Procuro, exploro. Busco tudo aquilo que me excita e me faz ficar mal ao mesmo tempo. Busco a excitação que nasce da humilhação. Busco o aniquilamento. Busco os indivíduos mais bizarros, aqueles que enviam fotos sadomasoquistas, aqueles que me tratam como uma verdadeira puta” (Panarello, 2004, p. 75).
Entrei num chat, na sala “Sexo perverso”, com o apelido “whore”... Ele logo me contatou, “the carnage”; foi direto, explícito, invasivo, exatamente como eu queria que fosse. – Como você gostaria de ser comida?... E eu respondi: – Com brutalidade, quero ser tratada como um objeto” (Idem, p. 79).
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A escrita da Melissa é muitas vezes “sem véus”, descoberta, invadida pelo gozo: “Montei em cima dele e deixei que sua haste mirasse bem no centro do meu corpo” (Panarello, 2004, p. 27). “Levantei-me e, chegando perto de sua orelha sussurrei: – Me fode” (Idem, p. 99).
Ela busca essa mesma liberdade na “carne”, se oferecendo a qualquer um como objeto, mas o que encontra é a angústia e o horror. O encontro com o outro é desconcertante. O gozo avassalador causa estranhamento e angústia: “Tudo começou como sempre, e acabou da mesma maneira. Eu sou uma estúpida, diário, não deveria ter permitido que ele se aproximasse outra vez” (Panarello, 2004, p. 35).
A fantasia é o recurso utilizado pelo sujeito nesse momento de confronto com o outro sexo, mas ela vacila exatamente diante do gozo que escapa ao falo: o gozo d’A Mulher, um gozo sem sentido e implacável. Ao se oferecer como objeto de gozo para o Outro, Melissa se apavora diante da possibilidade de seu aniquilamento enquanto sujeito: “Embaixo das cobertas, voltei a pensar nas palavras do pintor e depois na manhã anterior, quando perdi aquilo que o velho brasileiro tinha achado de tão especial em mim. Perdi entre uns lençóis frios demais e as mãos de alguém que devorou o próprio coração, que já não bate mais. Morro” (Panarello, 2004, p. 29).
No encontro com o outro sexo, o sujeito adolescente, na posição feminina, se faz de semblante de objeto causa do desejo do Outro. No entanto, Melissa, ao invés de “se fazer” desejar bancando o objeto, ela o encarna. Freud, no texto “Uma criança é espancada” (1919), mostra a construção da fantasia de espancamento em três tempos: “O meu pai está batendo na criança”, “estou sendo espancada por meu pai”, “uma criança é espancada”. Comenta que essa fantasia é também uma forma de assegurar o amor do pai, ou seja, “se o meu pai me bate é porque me ama”. Melissa, ao se fazer escrava dos homens, tenta se assegurar do amor deles, e fundamentalmente, tenta resgatar de alguma forma sua alienação ao Outro, buscando anular a perda que se inscreveu com a irrupção do gozo no tempo da adolescência. “Se eu gritar, pensei, ele vai ficar satisfeito, afinal foi o que ele pediu. Vou fazer tudo o que ele me mandar fazer” (Panarello, 2004, p. 46).
Nesse despertar pubertário, surgem pedaços de real que incitam a criação de um lugar e de novos laços. O adolescente tem, entretanto, uma chance de inventar uma resposta para si, capaz de tecer seu trajeto singular. A escrita pode ser uma possibilidade de certo ordenamento desse desregramento. Alguns jovens se aventuram à escritura, como nos seus diários íntimos, pois, segundo Lacadée, alguma coisa se liga a esta questão da escrita, ou seja, a errância é ligada à questão da escritura. O gosto das palavras pode permitir ao adolescente, em sofrimento, agarrar alguma coisa do seu ser. É o que podemos observar no diário de Melissa: “A solidão talvez esteja me destruindo, mas já não me dá medo. Eu sou a melhor amiga de mim mesma, eu nunca iria me trair, me abandonar” (Panarello, 2004, p. 35).
Comentando sobre os escritos de Rimbaud, Lacadée (2007) observa como o tempo da adolescência pode levar certos sujeitos aos sofrimentos do exílio. Mas ele acredita que Rimbaud soube de modo magnífico elevar a perturbação do comportamento à dignidade de uma pantomina, de um texto que se escreve. A língua que o adolescente procura pode, por um trabalho onde o gosto das palavras é o motor, lhe permitir traduzir esta parte viva em seu texto. Lacadée propõe ao psicanalista saber se aproximar desta língua adolescente, se aproximar desse gosto pelas palavras tão próximas do corpo, para que o despertar não readormeça.
Existe um grande interesse pelas palavras e pela escrita na adolescência. Essa escrita tem uma importante relação com o corpo, já que as palavras estão tão próximas do corpo. A relação entre escrita e corpo foi bastante enunciada na obra de Lacan. No seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan comenta que nosso corpo é mediatizado pelos objetos pulsionais, que são objetos compartilhados com o Outro, como o olhar e a voz. Esses objetos a são objetos de circulação que não pertencem exclusivamente ao corpo próprio nem ao corpo do outro: “O objeto a é algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão” (Lacan, 1964, p. 101). As pulsões fazem um movimento circular, saindo através da borda erógena (orifícios pulsionais) para a ela retornar, depois de contornar o objeto a.
Lacan recorre a Freud para afirmar que a sexualidade só se realiza pela operação das pulsões, no que elas são pulsões parciais. Ele descreve a passagem da pulsão oral para a pulsão anal não como um processo de maturação, mas pela intervenção da demanda do Outro. Entretanto, o alvo da pulsão não é outra coisa senão o retorno em circuito: “Nenhum alimento jamais satisfará a pulsão oral, senão se contornando o objeto eternamente faltante” (Idem, p.170). Esse circuito pulsional, descrito por Freud, é retomado por Lacan, destacando os seus três tempos. O sujeito da pulsão, que é propriamente o outro, só aparece no fechamento do circuito, no seu terceiro tempo.
O que organiza os orifícios pulsionais é a dialética fálica. No movimento do circuito pulsional, algo se escreve. Na constituição de um corpo pulsional, há um “escrever” do corpo, marcado pela incidência do Outro.
Em O seminário 17: o avesso da psicanálise, Lacan comenta que a linguagem é a condição do inconsciente e que o inconsciente permite situar o desejo (1969-70, p. 43). No entanto, a repetição significante visa ao gozo, ela se funda em um retorno do gozo. Na própria repetição, no entanto, há perda de gozo. Lacan situa a origem do saber na repetição, sob a forma do traço unário. O significante se introduz como aparelho de gozo. Há uma equivalência entre o gesto que marca, e o corpo, que é objeto de gozo do Outro. Desta maneira se dá uma das vias de entrada do Outro em seu mundo. O autor ainda observa que a imagem especular do eu é sustentada do interior pelo objeto perdido que ela apenas veste, por onde o gozo se introduz. Assim, o saber, originado no traço unário que funda o gozo e introduz a repetição significante, como retorno do gozo, mostra a sua equivalência com o gozo do Outro. O saber é equivalente ao gozo do Outro.
Uma série de objetos vem preencher essa hiância que se produz na perda de gozo da repetição significante (objetos a: oral, anal, escópico, vocal). É com o saber como meio de gozo que se produz o trabalho que tem um sentido obscuro, que é a verdade. A verdade é a impotência, pois ela só poderia ser enunciada por um semidizer. Lacan, então, mostra a lógica do funcionamento dos discursos, que estruturam o laço social, discussão que será feita adiante. Apoiando-nos nesses recortes do Seminário 17 de Lacan, buscamos evidenciar a relação entre a escrita e o corpo. O gesto que marca o corpo introduz nele o gozo. A imagem especular do eu é sustentada pelo objeto perdido, ao mesmo tempo que o vela, por onde o gozo se introduz. A repetição significante, ou a busca pelo saber, visa ao gozo e, paradoxalmente, leva à perda de gozo. O gozo, resíduo da operação significante, é, no entanto, aquilo que põe o sujeito em marcha.
Em O seminário 20: Mais ainda, Lacan (1972-73) observa que falamos com o nosso corpo. Ao falarmos, aquilo que está em jogo nas pulsões encontra um escoamento. Mas, para além do entendimento das palavras, para além do sentido, está presente a escrita, a dimensão da língua. Assim, Lacan postula que as palavras funcionam como escoamento das pulsões, como forma simbólica de apreensão do real, e destaca que, para além da dimensão do sentido, está a dimensão da língua.
Na relação da escrita com o corpo na adolescência, existe uma dimensão pública e outra privada. Ana Costa, em A transicionalidade na adolescência (2004), ressalta duas formas de escrita e de marca corporal que a escrita coloca em causa. A primeira é o caráter coletivo da escrita, que implica todos e cada um, inclusive corporalmente, na condição de circular socialmente. A condição de coletivizar o corpo é de que ele constitua algo que se inscreva no olhar do Outro. Um exemplo é a tatuagem, uma escrita no corpo. A marca corporal constitui algo que faz circular o olhar pelo corpo. A autora descreve uma outra face da escrita, que se apresenta através do seu caráter privado, como o diário adolescente. Esse tipo de escrita diz respeito a uma necessidade que está colocada na relação com um resto, como uma impossibilidade de universalizar, de tornar o corpo completamente coletivizável, de sublimar completamente o que fica como resto da operação de representação do corpo.
A escrita “transporta detritos”. Os detritos são restos de uma operação de separação nunca concluída, restos não assimiláveis, que escapam nesses objetos pulsionais que nos ligam ao Outro. No ato de escrever, o sujeito transporta esses restos, buscando dar conta de algo não “registrado” do lado do autor, um resto inassimilável pelo simbólico. Esse resto, expresso nos diários, implica a necessidade de ter, de alguma maneira, o suporte da letra. Quando só se escreve na condição de não se mostrar, segundo Costa (2004), esta condição implica um resto ligado ao funcionamento do olhar, que somente funciona a partir de algo velado. Em concordância com a autora, podemos localizar na escrita de um diário a tentativa do sujeito de dar conta desse excesso não assimilável pelo simbólico, a tentativa de transportar pela via da escrita uma dimensão que não é totalmente coletivizável, de um resto que deve se subtrair ao olhar do Outro.
Este resto como o impossível de sublimar, resto da operação de representação do corpo, é também o resto que o espelho não recobre, o estranho, como ilustra Melissa:
“Onde foi parar você, a Narcisa que se amava tanto e tanto sorria, tanto queria dar e mais ainda receber? Onde acabaram seus sonhos, suas esperanças, suas loucuras, loucuras de vida, loucuras de morte? Onde está você, imagem refletida no espelho, onde posso te procurar, te encontrar, como te segurar?” (Panarello, 2004, p. 126).
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A experiência do duplo, do estranho, é frequente na escrita de Melissa: “Não, aquela não era eu. Era a outra, a que não se ama, deixando-se roçar por mãos ávidas e desconhecidas...” (Panarello, 2004, p. 58).
Para Costa (2004), o diário íntimo pode ser pensado como semelhante a um objeto transicional, que vai permitir uma contenção e uma reconstituição do campo do Outro, viabilizando relações com os semelhantes. Nesse momento de passagem, de reconstrução do corpo, o jovem precisa de outro suporte para “o olhar” e os diários são suportes para uma circulação, que dependem de um registro fálico, uma representação do corpo que seja em comum com outros. O diário, como evento transicional, é um a priori para a construção desse registro, sendo mais da ordem do privado que do grupal. No campo do privado, o sujeito faz do objeto um suporte da falha no espelho. Segundo a autora, essa construção do amigo imaginário é algo do próprio corpo que se cola no objeto, mas, ao mesmo tempo, ele não é só objeto nem só corpo, é também palavra.
Assim, a escrita na adolescência vai ocupar o campo da transicionalidade, como um elemento terceiro que é ao mesmo tempo incluído e excluído do campo representacional. Ela destaca também o caráter de endereçamento da escrita, que leva à construção de dois lugares: o do sujeito e o do Outro. A autora distingue a escrita de um diário íntimo, como construção de um espaço privado, da escrita para outros. No campo da transicionalidade, a escrita ainda não é para outros, ela está construindo os lugares. Escrever para outros significa perder. Portanto, a escrita, quando sai do campo transicional e passa à cultura, mostra a possibilidade de produzir algo que seja interpretante do contexto, que tenha a ver com o “espírito do tempo”, que diga respeito ao laço social, para onde essa escrita se dirige. Há então a saída do suporte estrito ao eu para que seja também uma produção cultural, uma passagem do privado ao público, da dimensão do segredo para a dimensão da circulação social, podendo ser interpretante de um sujeito.
De fato, podemos diferenciar a escrita “para si” da escrita “para um outro”. Na escrita de um diário íntimo, há a construção de um espaço íntimo, privado. Essa escrita, ao ser lançada no espaço público, faz laço social. Nesse sentido, podemos diferenciar o diário íntimo do blog, que é uma escrita para os outros. Mas, a partir das considerações que fizemos, sabemos da ambiguidade existente entre as dimensões pública e privada. O diário íntimo comporta uma dimensão pública e veremos como o blog comporta também uma dimensão privada.
Ao terminar o seu diário, Melissa mostra ter feito parte de seu percurso. Ela continua a realizar a sua travessia para chegar do outro lado do túnel. A escrita tornou possível a reconstrução de um véu fálico, “a ilusão do amor”, a fantasia que encobre o traumático do sexual:
Concluí minha viagem dentro do bosque, consegui escapar da torre do orco, das garras do anjo tentador e de seus diabos, fugi do monstro andrógino. E acabei no castelo do príncipe árabe, que esperou por mim sentado em almofadas macias e aveludadas. Me fez despir as minhas vestes gastas e me deu roupas de princesa. Chamou as criadas e mandou que me penteassem, depois beijou-me na testa e disse que ia me olhar enquanto eu dormia. Depois, uma noite, fizemos amor, e quando voltei para casa vi meus cabelos ainda brilhantes e a maquiagem intacta. Uma princesa, como minha mãe sempre disse, tão linda que até os sonhos querem roubá-la (Panarello, 2004, p. 157).
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Conclusão
É possível perceber que, através da escrita de seu diário, Melissa constrói o seu romance particular, tecendo um fio que reconstitui o manto imaginário que se desfez diante do encontro com o real do sexo. Diante da ausência de um significante feminino, surge a necessidade de se constituir um véu fálico, substitutivo da falta. Ao construir o seu mito particular, ela passa a se reconhecer nessa história, que, ao final, termina como os contos de fadas, ao se re-encontrar no traço identificatório que fisgou do Outro: a princesa, que escova 100 vezes os seus cabelos antes de ir para a cama. Uma princesa, como sua mãe a chamava. Mas não mais a “princesa da mãe”, e sim alguém que encontra um príncipe, que a “reveste” de princesa e que a ama. Nesse novo encontro, ela não mais “encarna” o objeto sexual, mas se faz de semblante de objeto causa do desejo do Outro. De uma prática sexual “sem restrições”, ao início da arte do velamento, via de acesso à feminilidade.
Este trabalho foi possível através da escrita. A escrita possibilitou a Melissa um suporte simbólico para “dizer” desse encontro com o real do sexo. Melissa resolve publicar o seu diário, coletivizá-lo, fazê-lo circular socialmente, marcando a saída do suporte estrito ao eu para uma produção cultural, fazendo uma passagem do privado ao público, da dimensão do segredo para a dimensão da circulação social. Podemos considerar essa escrita do diário como um sintomapara Melissa, pois foi uma solução encontrada por ela diante do confronto com o real do sexo.
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Texto recebido em: 23/04/2009
Aprovado em: 25/07/2009
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