I- Introdução
Este trabalho se insere na pesquisa que venho desenvolvendo no curso de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, orientada pela professora Tania Coelho dos Santos e também se integra às pesquisas desenvolvidas pelo Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo.
Nessa pesquisa pretendo discutir, a partir do atendimento a adolescentes que cumprem medida sócio-educativa, a possibilidade de fazer operar o discurso psicanalítico nesse campo onde predomina o discurso jurídico, correcional e repressivo. Como promover uma mudança subjetiva nesses jovens capturados pela pobreza e pela fragilidade dos laços sociais? A que seus atos infracionais vêm responder?
No Rio de Janeiro, o DEGASE – Departamento Geral de Ações Sócio-educativas – é o órgão responsável pela execução das medidas sócio-educativas aplicadas pelas Varas da Infância e da Juventude do Estado do Rio de Janeiro.
Desde a sua criação, prevalecia no DEGASE, nos moldes do sistema penitenciário, a repressão, a intimidação, a disciplina e a visão da medida como punitiva e não como sócio-educativa. Apesar dos esforços dos diversos profissionais envolvidos no atendimento ao adolescente – médicos, psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, educadores – em fazer valer a doutrina de proteção integral ao adolescente em conflito com a lei, conforme estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, foi somente a partir de 2006 que uma série de reformulações políticas no âmbito Federal, Estadual e Municipal fez deflagrar dentro do próprio sistema sócio-educativo a necessidade de reformulação da política de atendimento. Esta mudança teve o objetivo de atender às diretrizes preconizadas no Sistema Nacional de Atendimento Sócio-Educativo - SINASE, visando promover a inclusão e a responsabilização do adolescente que comete ato infracional.
Somente depois de dezesseis anos de promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Brasil conseguiu definir parâmetros para o atendimento sócio-educativo com bases éticas e pedagógicas, instituindo uma referência para a estruturação do Sistema de Atendimento Sócio-Educativo nos Estados e Municípios, através da articulação das várias áreas das políticas públicas, de forma que o atendimento ocorra fundamentado no princípio da incompletude institucional e na perspectiva da inclusão social dos adolescentes.
Contudo, a reestruturação do sistema sócio-educativo é lenta e enfrenta dificuldades, de modo que ainda prevalecem abusos, torturas, poucas atividades sócio-educativas e espaços físicos inadequados. O adolescente ainda fica em condições sub-humanas e os profissionais da chamada “equipe técnica” – psicólogos, assistentes sociais e pedagogos –, “engessados” na elaboração de relatórios que, a rigor, deveriam auxiliar o judiciário a estabelecer as medidas sócio-educativas cabíveis, mas que nem sempre o fazem.
O atual modelo de atendimento ao adolescente em conflito com a lei nos impulsiona a repensar a nossa prática. É necessário construir uma política de atendimento onde, além do acesso aos direitos e às políticas públicas, seja possível fazer surgir o sujeito implicado nas suas ações e responsabilizado por elas, retirando-o da posição de vítima. A questão de uma “ressocialização” seria assim, deslocada para se introduzir uma reflexão eminentemente ética.
II- O percurso da pesquisa
A pesquisa vem sendo feita a partir de uma massa de 200 atendimentos, realizados no período de Agosto a Dezembro de 2007. Na primeira fase, procuramos conhecer quem é o adolescente que dá entrada no Sistema Sócio-Educativo. Para isso, coletei dados referentes à idade do adolescente, número de entradas no Sistema Sócio-Educativo, tipo de ato infracional praticado, o que motivou a prática do ato infracional, vida familiar, escolaridade e uso de drogas. Nosso objetivo era construir os laços sociais desses adolescentes e, para além das carências materiais, familiares e sociais, verificar sua posição subjetiva e implicação frente ao ato infracional praticado.
Os atendimentos foram realizados no Núcleo Biopsicossocial Anita Heloisa Mantuano, unidade do Departamento Geral de Ações Sócio-educativas – DEGASE. Por este Núcleo passam todos os adolescentes que são encaminhados ao Centro de Triagem e Recepção (CTR) pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente ou pela Vara da Infância e da Juventude, de modo que o atendimento nessa unidade permite visualizar um universo representativo dos adolescentes que entram no DEGASE.
Os dados da pesquisa2
Faixa Etária e Número de entradas no DEGASE
Esses jovens chegam ao DEGASE com idade entre 16 e 17 anos. A maioria é do sexo masculino, morador de comunidade pobre do Rio de Janeiro ou do interior do Estado. Essas comunidades não dispõem de infra-estrutura nos serviços de atendimentos e são carentes das condições mínimas de urbanização, tais como saneamento, circulação, transporte, etc. São marcadas pela violência e dominadas pelos “comandos” do tráfico de drogas ou “milícias”, que impõem suas leis a “ferro e fogo”. Isso não significa que os jovens de classe média não tenham relação conflitiva com a lei, mas são poucos os que entram no sistema sócio-educativo.
Apesar da maioria – 58% – estar ingressando no DEGASE pela primeira vez, é alto o número de reincidências – 42%. Isto aponta para fracasso do sistema sócio-educativo em promover ações que visem uma intervenção comprometida com o acesso desses jovens ao processo de cidadania.
F. é um desses casos que aumenta os dados estatísticos das reincidências. Atualmente com 18 anos, afirma: “- Estou nessa vida desde os 12 anos. Entrei aqui várias vezes, perdi até a conta, mas agora quero parar, vou cumprir tudo direitinho, porque já sou ‘di maior’”. Contudo, o que constatamos em nossa prática é que nem sempre eles param.
O jornal O Globo3 publicou uma série de reportagens sobre este assunto no período de 02 a 10 de dezembro de 2007. Nela, aponta que mais da metade - 52,6 % - dos adolescentes que se envolveram em atos infracionais no ano de 2000, morreu ou cometeu outros crimes após completar 18 anos.
Segundo o levantamento feito pelo mesmo jornal em processos tramitados durante o ano de 2000 na 2ª. Vara da Infância e da Juventude, ao chegar à maioridade, 34,3% dos jovens foram flagrados cometendo novos crimes e 18,5% foram assassinados.
Como salientamos, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente tenha sido um avanço do ponto de vista da constituição de um marco legal, pouca coisa mudou no atendimento sócio-educativo. Com uma política marcadamente voltada para a segurança, ainda prevalecem a repressão, a intimidação, a disciplina e a visão da medida como punitiva e não como sócio-educativa.
Ato Infracional praticado
Podemos observar que é cada vez menor o número de adolescentes detidos por tráfico de drogas e que tem aumentado o número de adolescentes envolvidos com roubos e furtos. O cenário está mudando? Por quê?
Pesquisas4 anteriores também detectaram uma queda acentuada na participação desses adolescentes no tráfico de drogas e apontaram alguns fatores determinantes: a alta taxa de homicídios entre os jovens envolvidos e a queda dos rendimentos, o que tornou a atividade pouco atrativa. Eles começaram, então, a buscar opções em outras atividades ilícitas ou em trabalhos informais.
Essa análise confirma o que falam os adolescentes entrevistados. Eles vêem os roubos e furtos como atos fortuitos e sem conseqüências, “aprontações”, formas de conseguirem dinheiro rápido.
- R., 15 anos, que furtou a mochila de uma jovem, afirma: “- Eu não sou bandido, só queria o celular pra vender e comprar umas roupas...”.
- E., 15 anos, tentou furtar um colar “– Não sei porque fiz isso, eu já estava querendo um colar há um tempão... meus amigos falavam que era tranqüilo, mole, fui tentar e deu nisso... mas não vou fazer mais...”.
Diferentemente, o envolvimento com o tráfico de drogas é visto pelos adolescentes como um “trabalho”, dá status, dinheiro e “mulher”.
- F, 17 anos, relata que desde os 12 anos “se vira” para conseguir dinheiro. Já fez de tudo, trabalhou em “sacolão”, trocador em Kombi, oficina mecânica, camelô, etc. Aos 16 anos começou a usar drogas e a se envolver no tráfico. Sobre o seu envolvimento com o ato infracional afirma: “–... me envolvi porque ninguém dá emprego. Não posso ficar sem trabalhar, preciso de dinheiro...”.
- J., 17 anos, quarta passagem pelo sistema sócio educativo, descumpriu medida sócio educativa de semiliberdade imposta anteriormente, envolveu-se com o tráfico de drogas aos 15 anos, afirma: “- Me envolvi porque quis, sempre achei legal andar armado, ter dinheiro, mulher ...”.
Essas falas nos remetem ao próximo item investigado na pesquisa: o que motivou a prática do ato infracional.
Motivos do ato infracional
Chama a atenção o grande número de adolescentes que: negam envolvimento na prática do ato infracional no qual se vêem envolvidos, são tomados de surpresa, culpam o colega ou o policial, afirmam que foram “forjados”, reclamam da violência policial, sentem-se injustiçados.
- R., 15 anos, foi para a escola com um revólver de brinquedo, acessório de um vídeo game. Ele e o amigo resolveram “matar” aula. Ao sair da escola, mostrou para o amigo o brinquedo, que estava em sua mochila. Ao ver o revólver, o amigo pegou-o e, inesperadamente, assaltou uma garota. Tomado de surpresa, R. afirma que saiu correndo atrás do amigo com a intenção de fazer com que ele devolvesse o que roubou, mas foram pegos por um policial. Não conseguiu provar sua inocência.
- J., 14 anos, estava indo para casa da namorada. Ao descer o morro encontrou um amigo. Estavam juntos quando foram abordados por policiais: “- Eu tava tranqüilão porque não tinha nada pra temer, né, só que o meu colega tava com uma trouxinha de maconha que ele jogou no chão pra evitar o flagrante e não teve jeito, acabei sendo envolvido; agora tô aqui sem ter nada a ver com isso.” – fala chateado.
- T., 15 anos, aceitou uma carona na moto do colega, não sabia que a moto era roubada.
Enfim, são muitas as histórias, acontecimentos fortuitos, inesperados, onde o sujeito não se vê implicado. Entretanto, elas portam uma significação subjetiva. Qual é o valor desse ato que aparece totalmente incompreendido pelo sujeito sob a forma da negação?
Seguindo Freud, Lacan destacou que uma análise só progride do particular para o particular. Porém, a soma da experiência analítica permite destacar algumas formas gerais (Lacan, 1954, p. 387). É o que arriscaremos nesse trabalho.
Freud, em seu texto “A negativa” (1925), mostra como o conteúdo de uma imagem ou idéia recalcada pode abrir caminho até a consciência, com a condição de que seja negada. A negação é, assim, um índice do inconsciente, um modo de tomar conhecimento do que está recalcado (1925, p. 296). E continua: “a negativa (...) é uma Aufhebung (suspensão) do recalque, embora não, naturalmente, uma aceitação do que está recalcado”, pois “aqui, o intelectual separa-se do afetivo” (Ibid.). Negar ou afirmar algo é um julgamento intelectual. Freud atribui a origem do juízo “a partir da ação recíproca das pulsões primárias”. Julgar é uma continuação do processo original através do qual “o ego integra coisas a si ou as expele, de acordo com o principio de prazer” (Id. p. 299). Ele conclui que não se encontra na análise um “não” no inconsciente e que o reconhecimento do inconsciente pelo eu se exprime através de uma negativa.
Como salienta Lacan, “o que não veio à luz no simbólico reaparece no real” (1954, p. 390). É assim que se deve compreender afirmação de Freud sobre o momento mítico do sujeito onde, a partir das pulsões primárias, o ego integra coisas a si ou as expele - “a introdução no sujeito, e a expulsão para fora do sujeito” (Ibid.). É esta última que constitui o real, na medida em que ele é o domínio do que subsiste fora da simbolização.
Para Freud, a antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o inicio (1925, pg. 298). Nas palavras de Lacan, “nessa realidade que o sujeito tem que compor segundo a gama de seus objetos, o real, como suprimido da simbolização primordial, já está presente” (Lacan, 1954, p. 391, grifos no original). É por isso que aquilo que é subtraído pelo sujeito da possibilidade da fala, vai aparecer no real. Lacan coloca o ato como um modo de interferência entre o simbólico e o real, dessa vez, não sofrido pelo sujeito, mas atuado. (1954, p. 395)
Por mais que o adolescente negue seu envolvimento com o ato infracional, ele está na cena. Podemos tomar essa negativa como sendo da ordem do que não pode aparecer do seu desejo e que vem à luz sob a forma de um ato. Elucidaremos melhor essa questão, posteriormente, quando fizermos um estudo mais detalhado, a partir de casos clínicos, sobre a clinica do ato, tal como Lacan a explicita no seu seminário sobre a angústia (1962-63), onde distingue o acting out e a passagem ao ato, permitindo decifrar o que está em jogo nesse momento específico.
Outro motivo para a prática do ato infracional que aparece com mais freqüência, comprar roupa de marca, evidencia o quanto os adolescentes ficam identificados com o ideal publicitário do jovem hedonista, consumidor, difundido pela publicidade e buscam, através do consumo, uma inserção subjetiva no mundo.
O discurso capitalista5 define o sujeito pelo consumo, de modo que o que vai ser consumido não é mais o objeto em si, mas o que ele representa, para além da satisfação das necessidades, fazendo o sujeito crer que o objeto lhe é acessível: “Consumir é ser feliz!”.
Como analisa Santiago (2001, p. 219), a ciência não só torna possível o acesso ao real, mas determina-o e transforma-o, criando objetos que são oferecidos ao sujeito como meio de recuperação da satisfação pulsional. São os chamados gadgets – “... objeto engenhoso, divertido e sem utilidade...”. A ciência não se limita a fabricá-los, mas encontra uma forma de ligá-los ao sujeito, um meio de manter o desejo deste último aderido a tais objetos, de modo que o discurso capitalista e o discurso da ciência, ao promoverem o sujeito-gadget como solução da “falta-a ser” que habita o sujeito, realizam uma expulsão do sujeito do inconsciente.
É dentro desse contexto que podemos considerar o uso abusivo de drogas. Embora poucos adolescentes entrevistados pudessem ser considerados toxicômanos, muitos atribuíram o envolvimento com o ato infracional ao uso de drogas. A droga serve de anteparo face aos impasses do mal-estar do desejo, da angústia e da relação com os ideais.
Os adolescentes estão particularmente confrontados com a questão da identidade, do corpo e da sexuação e são sensíveis aos novos imperativos ordenadores da cultura, que impulsionam ao consumo, aos excessos e às satisfações excluídas do circuito da fala. (Coelho dos Santos, Inédito a).
Também fazem da prática do ato infracional um ganho fácil de dinheiro, o que evidencia um imediatismo e a falta de planos futuros. Os adolescentes vivem “o aqui e o agora”.
Muitos estão em situação de risco, seja porque perderam a mãe em tenra idade, seja porque viviam em uma família totalmente desprovida da condição de gerir a educação dos filhos. Em qualquer das situações eles são criados sem limites, acostumados a ficar pelas ruas ou na casa de parentes, sem vínculos afetivos. Atuam a situação de abandono nos seus laços sociais. Na rua, o uso de drogas ajuda a evitar a fome, a enfrentar o medo, o frio e a dura realidade do dia-a-dia. Além disso, vêem na prática de atos infracionais, formas de subsistência.
Outros apontam a influência de amigos como motivador da prática do ato infracional. Uma forma de sentirem aceitos pelo grupo. Eles não querem ser vistos como “mulherzinha”, medrosos ou serem alvo de chacota.
O grupo tem uma particular importância para o adolescente, pois é uma forma de separação e substituição do grupo familiar pelo grupo social, ao mesmo tempo em que busca ter semelhança com o outro, aquele com quem imaginariamente se identifica.
Sobre o Uso de drogas
Usa droga?
Idade em que começou a usar drogas:
Que tipo de droga usa?
Tipo de droga |
Casos |
% |
Só Cigarro |
14 |
8.8 |
Só Maconha |
47 |
29.3 |
Só Solvente |
5 |
3.2 |
Maconha e Cigarro |
40 |
25 |
Maconha e Cocaína |
12 |
7.5 |
Maconha e Crack |
8 |
5 |
Maconha e álcool |
3 |
1.9 |
Cigarro e álcool |
4 |
2.5 |
Maconha, cigarro e álcool |
3 |
1.9 |
Maconha, cigarro e êxtase |
1 |
0.6 |
Maconha, solvente e cigarro |
7 |
4.4 |
Maconha, solvente e crack |
1 |
0.6 |
Maconha, cigarro e cocaína |
2 |
1.2 |
Maconha, cocaína e crack |
4 |
2.5 |
Maconha, cigarro, solvente, êxtase |
1 |
0.6 |
Maconha, cigarro, haxixe, crack |
1 |
0.6 |
Maconha, haxixe, cocaína, crack |
2 |
1.2 |
Maconha, cocaína, crack, solvente |
5 |
3.2 |
TOTAL |
160 |
100 |
|
Como salientamos, embora poucos jovens possam ser considerados toxicômanos, é grande o número dos que fazem uso de drogas. A droga mais usada é a maconha. O solvente é mais utilizado entre os que vivem em situação de rua. A incidência do uso do álcool é maior entre os adolescentes que vivem no interior do Estado e o uso do crack tem crescido sensivelmente.
Por que é tão grande a incidência do uso de drogas na adolescência?
É no contexto da problematização freudiana da felicidade como impossível que a droga pode ser considerada. Em “O Mal-estar na civilização”, Freud (1930), afirma que o recurso à droga torna-se um “amortecedor de preocupações”, que permite ao sujeito “livrar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo para si próprio, que ofereça à sensibilidade melhores condições” (1930, p. 96-97).
Freud nos mostra, de maneira brilhante, que o mal-estar acompanha a civilização que é fonte de desenvolvimento, mas também de sofrimento. O homem busca soluções diante dos impasses da sua existência e de sua angústia, por ser menos prometido à felicidade que à morte.
Como vimos, os adolescentes estão particularmente confrontados com a questão da identidade, do corpo e da sexuação e a droga serve de anteparo face aos impasses do mal-estar do desejo e da angústia.
O despertar da sexualidade na adolescência produz atração e temor diante do real de um gozo desconhecido que se manifesta à revelia do sujeito e que gera culpa pelas fantasias incestuosas que suscita.
A adolescência é a última etapa da vida sexual infantil. É o momento onde a pulsão sexual se coloca a serviço da função reprodutiva, colocando o ato sexual à disposição do sujeito. Contudo, longe de tornar a relação sexual possível, suscita fantasias que o afastam dela, revelando aí um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que a maturação biológica torna possível a realização do ato sexual, faz com que o sujeito desperte para o impossível dessa relação. (Freud, 1905)
Esse mal-estar decorrente da impossibilidade da relação entre os sexos é estruturante e isso aparece de uma maneira dramática para o adolescente. (Lacan, 1965. p. 131-133) Drama esse, que se manifesta através dos atos contestatórios e agressivos, que os levam a se refugiar nas drogas como forma de evitar o laço com o Outro ou como uma solução para a angústia, que é sempre de castração.
Sobre a Escolaridade
Está estudando no momento do envolvimento com o ato infracional?
Sabe ler e Escrever ?
Nível de Escolaridade
Um outro aspecto importante a ser considerado é o alto índice de evasão escolar entre os adolescentes que estão cumprindo alguma medida sócio-educativa.
Nas entrevistas realizadas constatamos que 73% desses jovens estavam fora da escola quando se envolveram com os atos infracionais; 30,4% interromperam os estudos na 5ª série do ensino fundamental (6º. ano do novo ciclo fundamental); muitos são analfabetos funcionais6 e são poucos, apenas 7,1%, os que chegaram ao ensino médio.
Ficamos, então, confrontados com a questão: como engajar esses jovens em uma educação formal se, com idade entre 14 e 17 anos, estão fora da série prevista para a sua idade e desconhecem a importância da educação para sua formação futura? Não conseguem aprender em uma escola que também não está preparada para ensiná-los. A desvalorização da escolaridade mantém esses jovens sem perspectivas e desprovidos da capacidade de transformar suas vidas.
Se por um lado, acompanhamos o descaso e a ineficiência do poder público na formação de uma escola para todos que forneça qualidade básica de inserção da criança e do jovem no processo de aprendizagem, por outro acompanhamos a dificuldade das famílias na transmissão dos valores.
Como afirma Lacan (1938), “... a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura. [...] a família prevalece na educação precoce, na repressão dos instintos e na aquisição da língua, legitimamente chamada materna”. Além de presidir “os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico”, ela também transmite “estruturas de comportamento e de representação, cujo jogo ultrapassa os limites da consciência.” (Ibid., p. 13)
O princípio da educação é a transmissão de conhecimento, mas, também, a transmissão da cultura, dos ideais, de uma transmissão que revela os objetos mais valorizados e investidos de sublimação no mundo. É a educação que possibilita substituir os objetos pulsionais por objetos sublimados, socialmente valorizados.
A forma como os pais transmitem aos filhos a importância da escolaridade é determinante na relação da criança com a aprendizagem. Quando os pais valorizam a escolaridade, os filhos crescem mais conscientes da importância dos estudos para o seu futuro, são capazes de adiar suas satisfações, construir metas, projetos de vida e formas de alcançá-los. O problema surge quando constatamos que muitos pais não dão prioridade aos estudos de seus filhos.
Freud já estava atento aos impasses experimentados pelo sujeito na civilização e alertou sobre o impossível que há no ato de governar, educar e analisar. Segundo Freud, o aspecto mais importante do trabalho de civilização recai sobre a renúncia ao prazer e à satisfação pulsional. Esta renúncia implicará no comparecimento do sujeito dividido, jamais plenamente satisfeito, tornando a completude impossível.
A descoberta do inconsciente por Freud revelou a importância central da função do pai, suporte das identificações constitutivas do sujeito e do laço social.
Freud (1913) atribui o mecanismo psíquico do recalque à função do pai. O pai é o agente da castração. A identificação ao pai mantém o sujeito na via do desejo afastando-o da atração pelo objeto incestuoso. A lei, sustentada pela função paterna, existe para estruturar o desejo. O desejo é da ordem da falta, regido pela castração, cuja satisfação está referida a um objeto perdido desde sempre.
Se, para Freud a lei repousa na interdição do incesto, Lacan vai além da proibição e situa a lei no nível das estruturas que determinam o sujeito. A castração é considerada por Lacan como um dado de estrutura, estando relacionada à impossibilidade da linguagem de tudo representar. A condição humana do não-todo revela o impossível da completude narcísica. A castração é estrutural, não é proibição, é impossibilidade. Somos todos marcados por essa falta estruturante, que é o que promove o movimento do desejo. O que se transmite de pai para filho é a castração, isto é, a forma como, enquanto sujeitos, fomos marcados pela Lei e pelo desejo.
Há, então, que se considerar o impossível da transmissão, a falta, a castração e o sujeito do inconsciente. Contudo, o avanço do discurso da ciência, do capitalismo, da difusão da psicanálise e dos métodos pedagógicos modernos, implicou na liberação das referências humanas e na conseqüente desresponsabilização pela formação das gerações futuras, gerando uma crise de autoridade e uma anulação do sujeito do inconsciente. Perdeu-se o elo da tradição que assegurava a transmissão do saber e dos valores fundantes em sociedade (Coelho dos Santos, Inédito b). O saber, hoje, circula separado da autoridade do mestre. É um saber que não tem poder. (Lacan, 1968-69). Como acontece em casa, a autoridade também é questionada nas escolas e os educadores têm o grande desafio de lidar com a questão das drogas e da violência dentro e fora do pátio das escolas.
Configuração Familiar
Por quem foram criados?
Com quem residem atualmente?
Assistimos, hoje, ao declínio da família tradicional e a fragilidade da relação entre pais e filhos. Diante da dificuldade de confrontarem seus filhos com limites e regras, os pais estão se subtraindo de suas tarefas e delegando à escola, ao conselho tutelar, ao Juiz, etc., o papel de solucionar os impasses com os quais se deparam na educação de seus filhos. Os jovens mostram-se perdidos, sem referências e expressam, nos comportamentos agressivos e desafiadores, a angústia que não conseguem traduzir em palavras.
Os comportamentos de risco, tão comuns na adolescência, como as toxicomanias, os atos infracionais e as violências, portam um apelo a que os pais manifestem alguma autoridade e façam restrição ao gozo. O adolescente é um desafiador da Lei, mas ele precisa que ela se mantenha para barrar os excessos que ele quer e não quer cometer. Ele precisa da Lei para sustentar o seu desejo que, no limite, é sempre incestuoso.
Ao analisarmos a configuração familiar da maioria desses jovens que dão entrada no sistema sócio-educativo, observamos que 37% dos adolescentes foram criados pela mãe; 36%, pelos pais (pai e mãe) e 15% pelos avós. Contudo, isso muda. Em algum momento de suas vidas ocorrem rupturas e cisões nas relações familiares. No momento em que se envolvem com o ato infracional, estão vivendo com madrastas, padrastos, avós, sozinhos ou com companheiras. Muitos jovens já são pais sem estarem preparados para exercer esta função, evidenciando a fragilidade da família e sua impotência na condução da educação dos filhos.
A presença da mãe como responsável pelo sustento da família é marcante, principalmente pelo desemprego que afeta os homens. Com baixos salários, e sem possuir recursos adequados para cuidar dos filhos na sua ausência, fica evidente, na fala desses jovens, a instabilidade dos cuidados ainda na infância. Crescem sem limites e sujeitos às influências da comunidade, muitas vezes, violenta.
Em “Nota sobre a criança”, Lacan (1969, p. 369) designa a implicação da família na “relação com um desejo que não seja anônimo” e articula o não-anônimo com o que há de particular nas funções da mãe e do pai. A função da mãe é a de promover cuidados que portem a “marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas”. O filho deve interessar à mãe para além da pura satisfação das necessidades biológicas. É fundamental que uma mãe, ao se ocupar de seu filho, o faça de maneira particular, que veicule o significante de sua falta, de seu desejo, que transmita o Nome-do-Pai. Por sua vez, a função do pai é também tomada pela dimensão do particular, pois “[...] seu nome é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo”, ou seja, como agente da castração, limita a satisfação e opera a inclusão da Lei no desejo.
O que observamos, hoje, são as dificuldades das famílias em articular Lei e desejo, de conter o gozo e de transmitir a castração. Isso repercute na transmissão da significação fálica e deixa o sujeito diante de um impasse frente à necessidade de se separar do Outro, da sexuação e da escolha de objeto, o que é atuado na adolescência.
Assim, embora configurações familiares marcadas pela ausência do pai e abandono da mãe sejam visíveis em estudos de casos relacionados à violência urbana, há que se considerar o particular de cada caso e a singularidade de cada sujeito. Esse ato, que muitas vezes tem um efeito avassalador na vida do sujeito, desempenha uma função em sua vida e na sua relação com o Outro. É importante recuperar a sua participação nesse ato, a fim de tornar possível para ele responsabilizar-se por isso e retificar sua posição subjetiva.
“Olha para tua participação na desordem da qual te queixas” – eis a resposta de Freud a Dora, fazendo com que ela percebesse sua participação subjetiva na Corte da qual ela era objeto, implicando-a naquilo de que se queixava.
Freud sustenta, assim, um caráter particular de responsabilidade que não tem a ver com responsabilidade jurídica ou moral. A responsabilidade do sujeito está relacionada à coragem de deixar falar o inconsciente, esse saber não sabido, que portamos em nós por sermos seres de linguagem.
Se excluirmos o sujeito de sua responsabilidade, nós o manteremos, sob o pretexto de ajudá-lo, alienado de sua condição.
O campo do sujeito é o campo de sua responsabilidade. Só o sujeito pode responder pelo seu ato para que possa assumir as rédeas de sua vida e, assim, transformá-la.
A trajetória de vida desses jovens, onde o laço social é fundado no abandono, na agressividade e na violência, deixa marcas em sua constituição subjetiva. É através de uma intervenção na dimensão clínica, educativa, social e política que se busca reconstruir com eles um novo caminho. É importante criar condições para que reflitam sobre a sua realidade, contem suas histórias, formulem suas questões, se impliquem e se posicionem em relação ao seu dizer e que não fiquem, simplesmente, capturados em seus destinos, sem saídas e sem escolhas. Por outro lado, é importante que os profissionais envolvidos no atendimento ao adolescente tenham uma escuta que, fundada na ética, faça surgir o sujeito implicado nas suas ações e responsabilizado por elas. Daí a importância da capacitação permanente desses profissionais envolvidos nesse trabalho, do incentivo à produção de publicações e das trocas de experiências.
Podemos oferecer ao adolescente a possibilidade de traduzir em palavras o que ele vive, permitindo que ele descubra, através da associação livre, o lugar da fala para tentar encontrar a fórmula da sua existência, formulando suas angústias ao invés de atuá-las (Lacadée, 2007).
Notas
1. Este texto integra minha pesquisa de doutoramento no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação da profa. Dra. Tania Coelho dos Santos e com o financiamento da CAPPES.
2. Todas as planilhas foram feitas por Alexandre Drucker de Campos do Setor de Estatística do DEGASE.
3. Pesquisas realizadas em 2001 e em 2006 pelo Núcleo de Violência e Direitos Humanos do Observatório de Favelas com adolescentes envolvidos com o tráfico em 34 favelas do Rio de Janeiro. Cf: reportagem do Jornal O Globo publicada em 08 de dezembro de 2007.
4. Série de reportagens do Jornal O Globo sobre ‘Di menor – Os adultos de hoje’, publicadas no período de 02 a 10 de dezembro de 2007.
5. A referência ao “discurso capitalista” baseia-se na “teoria dos quatro discursos” desenvolvida por Lacan (1969-70). Para a psicanálise os laços sociais são tecidos e estruturados pela linguagem e denominados discursos. Os discursos se articulam em uma ordem precisa e se apóiam na tese de que o real é impossível e que não há outro modo de articulá-lo senão por meio da lei, da proibição que divide o sujeito. O discurso do capitalista abole a categoria do impossível, anula o sujeito do inconsciente, fazendo-o acreditar que o objeto lhe é acessível. Para ler mais acessar www.nucleosephora.com.br/laboratorio/aulas/sinthomacorpoelacosocial
6. Não foi possível avaliar quantos eram analfabetos funcionais.
Referências bibliográficas
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___________. (2005) A prática lacaniana na civilização sem bússola. Coelho dos Santos, T. (org.) Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.
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___________. (2006) O psicanalista é um sinthoma. Latusa, Rio de Janeiro, n. 11, p. 57-72.
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Texto recebido em: 11/02/2009
Aprovado em: 06/06/2009
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