ética, lei e responsabilidade - Considerações sobre atendimento clínico aos adolescentes em conflito com a lei1

Ethics, law and responsibility – Considerations about clinical care for adolescents in conflict with the law


Christiane da Mota Zeitoune

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica/UFRJ
Mestre em Psicologia Clínica – PUC/RJ
Psicóloga do Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas/DEGASE
Membro da Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e contemporâneo
czeitoune@globo.com

Resumo

Este trabalho apresenta o percurso de uma pesquisa que está sendo desenvolvida no curso de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pretende discutir, a partir do atendimento a adolescentes que cumprem medida sócio-educativa, a possibilidade de fazer operar o discurso psicanalítico nesse campo onde predomina o discurso jurídico, correcional e repressivo. Como promover uma mudança subjetiva nesses jovens capturados pela pobreza e pela fragilidade dos laços sociais? A que esse ato infracional vem responder?

Palavras-chave: psicanálise, adolescente, ato infracional, drogas, responsabilidade.

 

Abstract

This work presents the journey of a research that is being developed in the course of the doctoral program of Post-Graduation in Psychoanalytic Theory of the Institute of Psychology of the Federal University of Rio de Janeiro and intends to discuss, from attending the teenagers who are under social educational penalty, the possibility to operate the psychoanalytic discourse in this field dominated by the discourse legal, corrective and repressive. How to promote a subjective change on those youth captured by poverty and weak social ties? What does this act mean?

Keywords: psychoanalysis, adolescent, infracional act, drugs, responsibility

 

I- Introdução

Este trabalho se insere na pesquisa que venho desenvolvendo no curso de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, orientada pela professora Tania Coelho dos Santos e também se integra às pesquisas desenvolvidas pelo Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo.

Nessa pesquisa pretendo discutir, a partir do atendimento a adolescentes que cumprem medida sócio-educativa, a possibilidade de fazer operar o discurso psicanalítico nesse campo onde predomina o discurso jurídico, correcional e repressivo. Como promover uma mudança subjetiva nesses jovens capturados pela pobreza e pela fragilidade dos laços sociais? A que seus atos infracionais vêm responder?

No Rio de Janeiro, o DEGASE – Departamento Geral de Ações Sócio-educativas – é o órgão responsável pela execução das medidas sócio-educativas aplicadas pelas Varas da Infância e da Juventude do Estado do Rio de Janeiro.

Desde a sua criação, prevalecia no DEGASE, nos moldes do sistema penitenciário, a repressão, a intimidação, a disciplina e a visão da medida como punitiva e não como sócio-educativa. Apesar dos esforços dos diversos profissionais envolvidos no atendimento ao adolescente – médicos, psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, educadores – em fazer valer a doutrina de proteção integral ao adolescente em conflito com a lei, conforme estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, foi somente a partir de 2006 que uma série de reformulações políticas no âmbito Federal, Estadual e Municipal fez deflagrar dentro do próprio sistema sócio-educativo a necessidade de reformulação da política de atendimento. Esta mudança teve o objetivo de atender às diretrizes preconizadas no Sistema Nacional de Atendimento Sócio-Educativo - SINASE, visando promover a inclusão e a responsabilização do adolescente que comete ato infracional.

Somente depois de dezesseis anos de promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Brasil conseguiu definir parâmetros para o atendimento sócio-educativo com bases éticas e pedagógicas, instituindo uma referência para a estruturação do Sistema de Atendimento Sócio-Educativo nos Estados e Municípios, através da articulação das várias áreas das políticas públicas, de forma que o atendimento ocorra fundamentado no princípio da incompletude institucional e na perspectiva da inclusão social dos adolescentes.

Contudo, a reestruturação do sistema sócio-educativo é lenta e enfrenta dificuldades, de modo que ainda prevalecem abusos, torturas, poucas atividades sócio-educativas e espaços físicos inadequados. O adolescente ainda fica em condições sub-humanas e os profissionais da chamada “equipe técnica” – psicólogos, assistentes sociais e pedagogos –, “engessados” na elaboração de relatórios que, a rigor, deveriam auxiliar o judiciário a estabelecer as medidas sócio-educativas cabíveis, mas que nem sempre o fazem.

O atual modelo de atendimento ao adolescente em conflito com a lei nos impulsiona a repensar a nossa prática. É necessário construir uma política de atendimento onde, além do acesso aos direitos e às políticas públicas, seja possível fazer surgir o sujeito implicado nas suas ações e responsabilizado por elas, retirando-o da posição de vítima. A questão de uma “ressocialização” seria assim, deslocada para se introduzir uma reflexão eminentemente ética.

 

II- O percurso da pesquisa

A pesquisa vem sendo feita a partir de uma massa de 200 atendimentos, realizados no período de Agosto a Dezembro de 2007. Na primeira fase, procuramos conhecer quem é o adolescente que dá entrada no Sistema Sócio-Educativo. Para isso, coletei dados referentes à idade do adolescente, número de entradas no Sistema Sócio-Educativo, tipo de ato infracional praticado, o que motivou a prática do ato infracional, vida familiar, escolaridade e uso de drogas. Nosso objetivo era construir os laços sociais desses adolescentes e, para além das carências materiais, familiares e sociais, verificar sua posição subjetiva e implicação frente ao ato infracional praticado.

Os atendimentos foram realizados no Núcleo Biopsicossocial Anita Heloisa Mantuano, unidade do Departamento Geral de Ações Sócio-educativas – DEGASE. Por este Núcleo passam todos os adolescentes que são encaminhados ao Centro de Triagem e Recepção (CTR) pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente ou pela Vara da Infância e da Juventude, de modo que o atendimento nessa unidade permite visualizar um universo representativo dos adolescentes que entram no DEGASE.

 

Os dados da pesquisa2

Faixa Etária e Número de entradas no DEGASE

 

Esses jovens chegam ao DEGASE com idade entre 16 e 17 anos. A maioria é do sexo masculino, morador de comunidade pobre do Rio de Janeiro ou do interior do Estado. Essas comunidades não dispõem de infra-estrutura nos serviços de atendimentos e são carentes das condições mínimas de urbanização, tais como saneamento, circulação, transporte, etc. São marcadas pela violência e dominadas pelos “comandos” do tráfico de drogas ou “milícias”, que impõem suas leis a “ferro e fogo”. Isso não significa que os jovens de classe média não tenham relação conflitiva com a lei, mas são poucos os que entram no sistema sócio-educativo.

Apesar da maioria – 58% – estar ingressando no DEGASE pela primeira vez, é alto o número de reincidências – 42%. Isto aponta para fracasso do sistema sócio-educativo em promover ações que visem uma intervenção comprometida com o acesso desses jovens ao processo de cidadania.
F. é um desses casos que aumenta os dados estatísticos das reincidências. Atualmente com 18 anos, afirma: “- Estou nessa vida desde os 12 anos. Entrei aqui várias vezes, perdi até a conta, mas agora quero parar, vou cumprir tudo direitinho, porque já sou ‘di maior’”. Contudo, o que constatamos em nossa prática é que nem sempre eles param.

O jornal O Globo3 publicou uma série de reportagens sobre este assunto no período de 02 a 10 de dezembro de 2007. Nela, aponta que mais da metade - 52,6 % - dos adolescentes que se envolveram em atos infracionais no ano de 2000, morreu ou cometeu outros crimes após completar 18 anos.

Segundo o levantamento feito pelo mesmo jornal em processos tramitados durante o ano de 2000 na 2ª. Vara da Infância e da Juventude, ao chegar à maioridade, 34,3% dos jovens foram flagrados cometendo novos crimes e 18,5% foram assassinados.
Como salientamos, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente tenha sido um avanço do ponto de vista da constituição de um marco legal, pouca coisa mudou no atendimento sócio-educativo. Com uma política marcadamente voltada para a segurança, ainda prevalecem a repressão, a intimidação, a disciplina e a visão da medida como punitiva e não como sócio-educativa.

Ato Infracional praticado

Podemos observar que é cada vez menor o número de adolescentes detidos por tráfico de drogas e que tem aumentado o número de adolescentes envolvidos com roubos e furtos. O cenário está mudando? Por quê?

Pesquisas4 anteriores também detectaram uma queda acentuada na participação desses adolescentes no tráfico de drogas e apontaram alguns fatores determinantes: a alta taxa de homicídios entre os jovens envolvidos e a queda dos rendimentos, o que tornou a atividade pouco atrativa. Eles começaram, então, a buscar opções em outras atividades ilícitas ou em trabalhos informais.

Essa análise confirma o que falam os adolescentes entrevistados. Eles vêem os roubos e furtos como atos fortuitos e sem conseqüências, “aprontações”, formas de conseguirem dinheiro rápido.

  • R., 15 anos, que furtou a mochila de uma jovem, afirma: “- Eu não sou bandido, só queria o celular pra vender e comprar umas roupas...”.
  • E., 15 anos, tentou furtar um colar “– Não sei porque fiz isso, eu já estava querendo um colar há um tempão... meus amigos falavam que era tranqüilo, mole, fui tentar e deu nisso... mas não vou fazer mais...”.

Diferentemente, o envolvimento com o tráfico de drogas é visto pelos adolescentes como um “trabalho”, dá status, dinheiro e “mulher”.

  • F, 17 anos, relata que desde os 12 anos “se vira” para conseguir dinheiro. Já fez de tudo, trabalhou em “sacolão”, trocador em Kombi, oficina mecânica, camelô, etc. Aos 16 anos começou a usar drogas e a se envolver no tráfico. Sobre o seu envolvimento com o ato infracional afirma: “–... me envolvi porque ninguém dá emprego. Não posso ficar sem trabalhar, preciso de dinheiro...”.
  • J., 17 anos, quarta passagem pelo sistema sócio educativo, descumpriu medida sócio educativa de semiliberdade imposta anteriormente, envolveu-se com o tráfico de drogas aos 15 anos, afirma: “- Me envolvi porque quis, sempre achei legal andar armado, ter dinheiro, mulher ...”.

Essas falas nos remetem ao próximo item investigado na pesquisa: o que motivou a prática do ato infracional.

 

Motivos do ato infracional

Chama a atenção o grande número de adolescentes que: negam envolvimento na prática do ato infracional no qual se vêem envolvidos, são tomados de surpresa, culpam o colega ou o policial, afirmam que foram “forjados”, reclamam da violência policial, sentem-se injustiçados.

  • R., 15 anos, foi para a escola com um revólver de brinquedo, acessório de um vídeo game. Ele e o amigo resolveram “matar” aula. Ao sair da escola, mostrou para o amigo o brinquedo, que estava em sua mochila. Ao ver o revólver, o amigo pegou-o e, inesperadamente, assaltou uma garota. Tomado de surpresa, R. afirma que saiu correndo atrás do amigo com a intenção de fazer com que ele devolvesse o que roubou, mas foram pegos por um policial. Não conseguiu provar sua inocência.
  • J., 14 anos, estava indo para casa da namorada. Ao descer o morro encontrou um amigo. Estavam juntos quando foram abordados por policiais: “- Eu tava tranqüilão porque não tinha nada pra temer, né, só que o meu colega tava com uma trouxinha de maconha que ele jogou no chão pra evitar o flagrante e não teve jeito, acabei sendo envolvido; agora tô aqui sem ter nada a ver com isso.” – fala chateado.
  • T., 15 anos, aceitou uma carona na moto do colega, não sabia que a moto era roubada.

Enfim, são muitas as histórias, acontecimentos fortuitos, inesperados, onde o sujeito não se vê implicado. Entretanto, elas portam uma significação subjetiva. Qual é o valor desse ato que aparece totalmente incompreendido pelo sujeito sob a forma da negação?

Seguindo Freud, Lacan destacou que uma análise só progride do particular para o particular. Porém, a soma da experiência analítica permite destacar algumas formas gerais (Lacan, 1954, p. 387). É o que arriscaremos nesse trabalho.

Freud, em seu texto “A negativa” (1925), mostra como o conteúdo de uma imagem ou idéia recalcada pode abrir caminho até a consciência, com a condição de que seja negada. A negação é, assim, um índice do inconsciente, um modo de tomar conhecimento do que está recalcado (1925, p. 296). E continua: “a negativa (...) é uma Aufhebung (suspensão) do recalque, embora não, naturalmente, uma aceitação do que está recalcado”, pois “aqui, o intelectual separa-se do afetivo” (Ibid.). Negar ou afirmar algo é um julgamento intelectual. Freud atribui a origem do juízo “a partir da ação recíproca das pulsões primárias”. Julgar é uma continuação do processo original através do qual “o ego integra coisas a si ou as expele, de acordo com o principio de prazer” (Id. p. 299). Ele conclui que não se encontra na análise um “não” no inconsciente e que o reconhecimento do inconsciente pelo eu se exprime através de uma negativa.

Como salienta Lacan, “o que não veio à luz no simbólico reaparece no real” (1954, p. 390). É assim que se deve compreender afirmação de Freud sobre o momento mítico do sujeito onde, a partir das pulsões primárias, o ego integra coisas a si ou as expele - “a introdução no sujeito, e a expulsão para fora do sujeito” (Ibid.). É esta última que constitui o real, na medida em que ele é o domínio do que subsiste fora da simbolização.

Para Freud, a antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o inicio (1925, pg. 298). Nas palavras de Lacan, “nessa realidade que o sujeito tem que compor segundo a gama de seus objetos, o real, como suprimido da simbolização primordial, já está presente” (Lacan, 1954, p. 391, grifos no original). É por isso que aquilo que é subtraído pelo sujeito da possibilidade da fala, vai aparecer no real. Lacan coloca o ato como um modo de interferência entre o simbólico e o real, dessa vez, não sofrido pelo sujeito, mas atuado. (1954, p. 395)

Por mais que o adolescente negue seu envolvimento com o ato infracional, ele está na cena. Podemos tomar essa negativa como sendo da ordem do que não pode aparecer do seu desejo e que vem à luz sob a forma de um ato. Elucidaremos melhor essa questão, posteriormente, quando fizermos um estudo mais detalhado, a partir de casos clínicos, sobre a clinica do ato, tal como Lacan a explicita no seu seminário sobre a angústia (1962-63), onde distingue o acting out e a passagem ao ato, permitindo decifrar o que está em jogo nesse momento específico.

Outro motivo para a prática do ato infracional que aparece com mais freqüência, comprar roupa de marca, evidencia o quanto os adolescentes ficam identificados com o ideal publicitário do jovem hedonista, consumidor, difundido pela publicidade e buscam, através do consumo, uma inserção subjetiva no mundo.

O discurso capitalista5 define o sujeito pelo consumo, de modo que o que vai ser consumido não é mais o objeto em si, mas o que ele representa, para além da satisfação das necessidades, fazendo o sujeito crer que o objeto lhe é acessível: “Consumir é ser feliz!”.

Como analisa Santiago (2001, p. 219), a ciência não só torna possível o acesso ao real, mas determina-o e transforma-o, criando objetos que são oferecidos ao sujeito como meio de recuperação da satisfação pulsional. São os chamados gadgets – “... objeto engenhoso, divertido e sem utilidade...”. A ciência não se limita a fabricá-los, mas encontra uma forma de ligá-los ao sujeito, um meio de manter o desejo deste último aderido a tais objetos, de modo que o discurso capitalista e o discurso da ciência, ao promoverem o sujeito-gadget como solução da “falta-a ser” que habita o sujeito, realizam uma expulsão do sujeito do inconsciente.

É dentro desse contexto que podemos considerar o uso abusivo de drogas. Embora poucos adolescentes entrevistados pudessem ser considerados toxicômanos, muitos atribuíram o envolvimento com o ato infracional ao uso de drogas. A droga serve de anteparo face aos impasses do mal-estar do desejo, da angústia e da relação com os ideais.

Os adolescentes estão particularmente confrontados com a questão da identidade, do corpo e da sexuação e são sensíveis aos novos imperativos ordenadores da cultura, que impulsionam ao consumo, aos excessos e às satisfações excluídas do circuito da fala. (Coelho dos Santos, Inédito a).

Também fazem da prática do ato infracional um ganho fácil de dinheiro, o que evidencia um imediatismo e a falta de planos futuros. Os adolescentes vivem “o aqui e o agora”.

Muitos estão em situação de risco, seja porque perderam a mãe em tenra idade, seja porque viviam em uma família totalmente desprovida da condição de gerir a educação dos filhos. Em qualquer das situações eles são criados sem limites, acostumados a ficar pelas ruas ou na casa de parentes, sem vínculos afetivos. Atuam a situação de abandono nos seus laços sociais. Na rua, o uso de drogas ajuda a evitar a fome, a enfrentar o medo, o frio e a dura realidade do dia-a-dia. Além disso, vêem na prática de atos infracionais, formas de subsistência.

Outros apontam a influência de amigos como motivador da prática do ato infracional. Uma forma de sentirem aceitos pelo grupo. Eles não querem ser vistos como “mulherzinha”, medrosos ou serem alvo de chacota.

O grupo tem uma particular importância para o adolescente, pois é uma forma de separação e substituição do grupo familiar pelo grupo social, ao mesmo tempo em que busca ter semelhança com o outro, aquele com quem imaginariamente se identifica.

 

Sobre o Uso de drogas

Usa droga?

Idade em que começou a usar drogas:

Que tipo de droga usa?

Tipo de droga Casos %
Só Cigarro 14 8.8
Só Maconha 47 29.3
Só Solvente 5 3.2
Maconha e Cigarro 40 25
Maconha e Cocaína 12 7.5
Maconha e Crack 8 5
Maconha e álcool 3 1.9
Cigarro e álcool 4 2.5
Maconha, cigarro e álcool 3 1.9
Maconha, cigarro e êxtase 1 0.6
Maconha, solvente e cigarro 7 4.4
Maconha, solvente e crack 1 0.6
Maconha, cigarro e cocaína 2 1.2
Maconha, cocaína e crack 4 2.5
Maconha, cigarro, solvente, êxtase 1 0.6
Maconha, cigarro, haxixe, crack 1 0.6
Maconha, haxixe, cocaína, crack 2 1.2
Maconha, cocaína, crack, solvente 5 3.2
TOTAL 160 100

Como salientamos, embora poucos jovens possam ser considerados toxicômanos, é grande o número dos que fazem uso de drogas. A droga mais usada é a maconha. O solvente é mais utilizado entre os que vivem em situação de rua. A incidência do uso do álcool é maior entre os adolescentes que vivem no interior do Estado e o uso do crack tem crescido sensivelmente.

Por que é tão grande a incidência do uso de drogas na adolescência?

É no contexto da problematização freudiana da felicidade como impossível que a droga pode ser considerada. Em “O Mal-estar na civilização”, Freud (1930), afirma que o recurso à droga torna-se um “amortecedor de preocupações”, que permite ao sujeito “livrar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo para si próprio, que ofereça à sensibilidade melhores condições” (1930, p. 96-97).

Freud nos mostra, de maneira brilhante, que o mal-estar acompanha a civilização que é fonte de desenvolvimento, mas também de sofrimento. O homem busca soluções diante dos impasses da sua existência e de sua angústia, por ser menos prometido à felicidade que à morte.

Como vimos, os adolescentes estão particularmente confrontados com a questão da identidade, do corpo e da sexuação e a droga serve de anteparo face aos impasses do mal-estar do desejo e da angústia.

O despertar da sexualidade na adolescência produz atração e temor diante do real de um gozo desconhecido que se manifesta à revelia do sujeito e que gera culpa pelas fantasias incestuosas que suscita.

A adolescência é a última etapa da vida sexual infantil. É o momento onde a pulsão sexual se coloca a serviço da função reprodutiva, colocando o ato sexual à disposição do sujeito. Contudo, longe de tornar a relação sexual possível, suscita fantasias que o afastam dela, revelando aí um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que a maturação biológica torna possível a realização do ato sexual, faz com que o sujeito desperte para o impossível dessa relação. (Freud, 1905)

Esse mal-estar decorrente da impossibilidade da relação entre os sexos é estruturante e isso aparece de uma maneira dramática para o adolescente. (Lacan, 1965. p. 131-133) Drama esse, que se manifesta através dos atos contestatórios e agressivos, que os levam a se refugiar nas drogas como forma de evitar o laço com o Outro ou como uma solução para a angústia, que é sempre de castração.

 

Sobre a Escolaridade

Está estudando no momento do envolvimento com o ato infracional?

Sabe ler e Escrever ?

Nível de Escolaridade

Um outro aspecto importante a ser considerado é o alto índice de evasão escolar entre os adolescentes que estão cumprindo alguma medida sócio-educativa.

Nas entrevistas realizadas constatamos que 73% desses jovens estavam fora da escola quando se envolveram com os atos infracionais; 30,4% interromperam os estudos na 5ª série do ensino fundamental (6º. ano do novo ciclo fundamental); muitos são analfabetos funcionais6 e são poucos, apenas 7,1%, os que chegaram ao ensino médio.

Ficamos, então, confrontados com a questão: como engajar esses jovens em uma educação formal se, com idade entre 14 e 17 anos, estão fora da série prevista para a sua idade e desconhecem a importância da educação para sua formação futura? Não conseguem aprender em uma escola que também não está preparada para ensiná-los. A desvalorização da escolaridade mantém esses jovens sem perspectivas e desprovidos da capacidade de transformar suas vidas.

Se por um lado, acompanhamos o descaso e a ineficiência do poder público na formação de uma escola para todos que forneça qualidade básica de inserção da criança e do jovem no processo de aprendizagem, por outro acompanhamos a dificuldade das famílias na transmissão dos valores.

Como afirma Lacan (1938), “... a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura. [...] a família prevalece na educação precoce, na repressão dos instintos e na aquisição da língua, legitimamente chamada materna”. Além de presidir “os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico”, ela também transmite “estruturas de comportamento e de representação, cujo jogo ultrapassa os limites da consciência.” (Ibid., p. 13)

O princípio da educação é a transmissão de conhecimento, mas, também, a transmissão da cultura, dos ideais, de uma transmissão que revela os objetos mais valorizados e investidos de sublimação no mundo. É a educação que possibilita substituir os objetos pulsionais por objetos sublimados, socialmente valorizados.

A forma como os pais transmitem aos filhos a importância da escolaridade é determinante na relação da criança com a aprendizagem. Quando os pais valorizam a escolaridade, os filhos crescem mais conscientes da importância dos estudos para o seu futuro, são capazes de adiar suas satisfações, construir metas, projetos de vida e formas de alcançá-los. O problema surge quando constatamos que muitos pais não dão prioridade aos estudos de seus filhos.

Freud já estava atento aos impasses experimentados pelo sujeito na civilização e alertou sobre o impossível que há no ato de governar, educar e analisar. Segundo Freud, o aspecto mais importante do trabalho de civilização recai sobre a renúncia ao prazer e à satisfação pulsional. Esta renúncia implicará no comparecimento do sujeito dividido, jamais plenamente satisfeito, tornando a completude impossível.

A descoberta do inconsciente por Freud revelou a importância central da função do pai, suporte das identificações constitutivas do sujeito e do laço social.

Freud (1913) atribui o mecanismo psíquico do recalque à função do pai. O pai é o agente da castração. A identificação ao pai mantém o sujeito na via do desejo afastando-o da atração pelo objeto incestuoso. A lei, sustentada pela função paterna, existe para estruturar o desejo. O desejo é da ordem da falta, regido pela castração, cuja satisfação está referida a um objeto perdido desde sempre.

Se, para Freud a lei repousa na interdição do incesto, Lacan vai além da proibição e situa a lei no nível das estruturas que determinam o sujeito. A castração é considerada por Lacan como um dado de estrutura, estando relacionada à impossibilidade da linguagem de tudo representar. A condição humana do não-todo revela o impossível da completude narcísica. A castração é estrutural, não é proibição, é impossibilidade. Somos todos marcados por essa falta estruturante, que é o que promove o movimento do desejo. O que se transmite de pai para filho é a castração, isto é, a forma como, enquanto sujeitos, fomos marcados pela Lei e pelo desejo.

Há, então, que se considerar o impossível da transmissão, a falta, a castração e o sujeito do inconsciente. Contudo, o avanço do discurso da ciência, do capitalismo, da difusão da psicanálise e dos métodos pedagógicos modernos, implicou na liberação das referências humanas e na conseqüente desresponsabilização pela formação das gerações futuras, gerando uma crise de autoridade e uma anulação do sujeito do inconsciente. Perdeu-se o elo da tradição que assegurava a transmissão do saber e dos valores fundantes em sociedade (Coelho dos Santos, Inédito b). O saber, hoje, circula separado da autoridade do mestre. É um saber que não tem poder. (Lacan, 1968-69). Como acontece em casa, a autoridade também é questionada nas escolas e os educadores têm o grande desafio de lidar com a questão das drogas e da violência dentro e fora do pátio das escolas.

 

Configuração Familiar

Por quem foram criados?

Com quem residem atualmente?

Assistimos, hoje, ao declínio da família tradicional e a fragilidade da relação entre pais e filhos. Diante da dificuldade de confrontarem seus filhos com limites e regras, os pais estão se subtraindo de suas tarefas e delegando à escola, ao conselho tutelar, ao Juiz, etc., o papel de solucionar os impasses com os quais se deparam na educação de seus filhos. Os jovens mostram-se perdidos, sem referências e expressam, nos comportamentos agressivos e desafiadores, a angústia que não conseguem traduzir em palavras.

Os comportamentos de risco, tão comuns na adolescência, como as toxicomanias, os atos infracionais e as violências, portam um apelo a que os pais manifestem alguma autoridade e façam restrição ao gozo. O adolescente é um desafiador da Lei, mas ele precisa que ela se mantenha para barrar os excessos que ele quer e não quer cometer. Ele precisa da Lei para sustentar o seu desejo que, no limite, é sempre incestuoso.

Ao analisarmos a configuração familiar da maioria desses jovens que dão entrada no sistema sócio-educativo, observamos que 37% dos adolescentes foram criados pela mãe; 36%, pelos pais (pai e mãe) e 15% pelos avós. Contudo, isso muda. Em algum momento de suas vidas ocorrem rupturas e cisões nas relações familiares. No momento em que se envolvem com o ato infracional, estão vivendo com madrastas, padrastos, avós, sozinhos ou com companheiras. Muitos jovens já são pais sem estarem preparados para exercer esta função, evidenciando a fragilidade da família e sua impotência na condução da educação dos filhos.

A presença da mãe como responsável pelo sustento da família é marcante, principalmente pelo desemprego que afeta os homens. Com baixos salários, e sem possuir recursos adequados para cuidar dos filhos na sua ausência, fica evidente, na fala desses jovens, a instabilidade dos cuidados ainda na infância. Crescem sem limites e sujeitos às influências da comunidade, muitas vezes, violenta.

Em “Nota sobre a criança”, Lacan (1969, p. 369) designa a implicação da família na “relação com um desejo que não seja anônimo” e articula o não-anônimo com o que há de particular nas funções da mãe e do pai. A função da mãe é a de promover cuidados que portem a “marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas”. O filho deve interessar à mãe para além da pura satisfação das necessidades biológicas. É fundamental que uma mãe, ao se ocupar de seu filho, o faça de maneira particular, que veicule o significante de sua falta, de seu desejo, que transmita o Nome-do-Pai. Por sua vez, a função do pai é também tomada pela dimensão do particular, pois “[...] seu nome é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo”, ou seja, como agente da castração, limita a satisfação e opera a inclusão da Lei no desejo.

O que observamos, hoje, são as dificuldades das famílias em articular Lei e desejo, de conter o gozo e de transmitir a castração. Isso repercute na transmissão da significação fálica e deixa o sujeito diante de um impasse frente à necessidade de se separar do Outro, da sexuação e da escolha de objeto, o que é atuado na adolescência.

Assim, embora configurações familiares marcadas pela ausência do pai e abandono da mãe sejam visíveis em estudos de casos relacionados à violência urbana, há que se considerar o particular de cada caso e a singularidade de cada sujeito. Esse ato, que muitas vezes tem um efeito avassalador na vida do sujeito, desempenha uma função em sua vida e na sua relação com o Outro. É importante recuperar a sua participação nesse ato, a fim de tornar possível para ele responsabilizar-se por isso e retificar sua posição subjetiva.

“Olha para tua participação na desordem da qual te queixas” – eis a resposta de Freud a Dora, fazendo com que ela percebesse sua participação subjetiva na Corte da qual ela era objeto, implicando-a naquilo de que se queixava.

Freud sustenta, assim, um caráter particular de responsabilidade que não tem a ver com responsabilidade jurídica ou moral. A responsabilidade do sujeito está relacionada à coragem de deixar falar o inconsciente, esse saber não sabido, que portamos em nós por sermos seres de linguagem.

Se excluirmos o sujeito de sua responsabilidade, nós o manteremos, sob o pretexto de ajudá-lo, alienado de sua condição.

O campo do sujeito é o campo de sua responsabilidade. Só o sujeito pode responder pelo seu ato para que possa assumir as rédeas de sua vida e, assim, transformá-la.

A trajetória de vida desses jovens, onde o laço social é fundado no abandono, na agressividade e na violência, deixa marcas em sua constituição subjetiva. É através de uma intervenção na dimensão clínica, educativa, social e política que se busca reconstruir com eles um novo caminho. É importante criar condições para que reflitam sobre a sua realidade, contem suas histórias, formulem suas questões, se impliquem e se posicionem em relação ao seu dizer e que não fiquem, simplesmente, capturados em seus destinos, sem saídas e sem escolhas. Por outro lado, é importante que os profissionais envolvidos no atendimento ao adolescente tenham uma escuta que, fundada na ética, faça surgir o sujeito implicado nas suas ações e responsabilizado por elas. Daí a importância da capacitação permanente desses profissionais envolvidos nesse trabalho, do incentivo à produção de publicações e das trocas de experiências.

Podemos oferecer ao adolescente a possibilidade de traduzir em palavras o que ele vive, permitindo que ele descubra, através da associação livre, o lugar da fala para tentar encontrar a fórmula da sua existência, formulando suas angústias ao invés de atuá-las (Lacadée, 2007).

 

Notas

1. Este texto integra minha pesquisa de doutoramento no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação da profa. Dra. Tania Coelho dos Santos e com o financiamento da CAPPES.

2. Todas as planilhas foram feitas por Alexandre Drucker de Campos do Setor de Estatística do DEGASE.

3. Pesquisas realizadas em 2001 e em 2006 pelo Núcleo de Violência e Direitos Humanos do Observatório de Favelas com adolescentes envolvidos com o tráfico em 34 favelas do Rio de Janeiro. Cf: reportagem do Jornal O Globo publicada em 08 de dezembro de 2007.

4. Série de reportagens do Jornal O Globo sobre ‘Di menor – Os adultos de hoje’, publicadas no período de 02 a 10 de dezembro de 2007.

5. A referência ao “discurso capitalista” baseia-se na “teoria dos quatro discursos” desenvolvida por Lacan (1969-70). Para a psicanálise os laços sociais são tecidos e estruturados pela linguagem e denominados discursos. Os discursos se articulam em uma ordem precisa e se apóiam na tese de que o real é impossível e que não há outro modo de articulá-lo senão por meio da lei, da proibição que divide o sujeito. O discurso do capitalista abole a categoria do impossível, anula o sujeito do inconsciente, fazendo-o acreditar que o objeto lhe é acessível. Para ler mais acessar www.nucleosephora.com.br/laboratorio/aulas/sinthomacorpoelacosocial

6. Não foi possível avaliar quantos eram analfabetos funcionais.

 

Referências bibliográficas

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Texto recebido em: 11/02/2009
Aprovado em: 06/06/2009