Na Europa do final do século XIX, o saber médico instituído era desafiado pelas chamadas doenças nervosas funcionais, para as quais a neurologia não podia encontrar explicação no campo da fisiologia, já que não era possível encontrar lesões orgânicas que correspondessem a esses distúrbios. O cientificismo que prevalecia no ambiente cultural de então fazia com que a desconsideração dos aspectos subjetivos fosse uma postura comum entre os médicos. Eles não consideravam a vida psíquica um objeto de estudo digno de um trabalho científico, uma vez que não era passível de investigação pelos métodos consagrados nas ciências naturais (Freud, 1924; Gay, 1989).
E foi um destes distúrbios enigmáticos que chamou particularmente a atenção de Sigmund Freud: a histeria. No início de sua atividade como médico ele assistiu, em Paris, diversas aulas de Jean-Martin Charcot, nas quais o pesquisador francês discorria sobre assuntos relacionados à histeria e à hipnose. Essas aulas lhe causaram forte impressão, pois indicaram que o sintoma histérico tinha um sentido a ser desvendado. De volta a Viena, Freud começou a atender pacientes histéricas e entrou novamente em contato com o amigo Joseph Breuer, que já lhe havia contado suas próprias experiências com o tratamento hipnótico.
Trabalhando juntos, publicaram a teoria que estabelecia o funcionamento do chamado método catártico, e que foi resumida por Freud da seguinte maneira:
“O fundamental [...] era o fato de que os sintomas de pacientes histéricos baseiam-se em cenas do seu passado que lhes causaram grande impressão mas foram esquecidas (traumas); a terapêutica, nisto apoiada, que consistia em fazê-los lembrar e reproduzir essas experiências num estado de hipnose (catarse); e o fragmento de teoria disto inferido, segundo o qual esses sintomas representavam um emprego anormal de doses de excitação que não haviam sido descarregadas (conversão)” (Freud, 1914, p. 19). |
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Mas, antes de tudo, porque tais cenas traumáticas haviam sido esquecidas? “A eclosão da histeria pode ser quase invariavelmente atribuída a um conflito psíquico que emerge quando uma representação incompatível detona uma defesa por parte do ego e solicita um recalcamento” (Freud, 1896, p. 206). Isso significa que duas forças contrárias estão em jogo: 1) a representação de um evento traumático, que, portanto, constitui uma ameaça ao eu, e 2) a defesa proveniente do eu, que busca negar, fazer desaparecer a representação ameaçadora. Tal disputa (onde há um movimento no sentido de desvelar o evento traumático simultaneamente a um outro movimento que procura escondê-lo) é geradora de tensão e pode ter como resultado a exclusão da representação psíquica da consciência, o que tem o efeito de esquecimento.
Por isso Freud viria a afirmar nos “Estudos sobre a histeria” (1893-95, p. 43): “Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências”. No entanto, essas reminiscências que se tornam determinantes de fenômenos histéricos possuem uma particularidade surpreendente: “estão inteiramente ausentes da lembrança dos pacientes quando em estado psíquico normal, ou só se fazem presentes de forma bastante sumária” (1893-95, p. 45). Mesmo assim, “persistem por longo tempo com surpreendente vigor e com todo o seu colorido afetivo” (1893-95, p. 45).
Lembranças quase ou totalmente esquecidas, mas que continuam a agir no presente, fora do conhecimento consciente. Como isso seria possível? A conclusão a que Breuer e Freud chegaram foi a seguinte:
“Quanto mais nos ocupamos desses fenômenos, mais nos convencemos que a divisão da consciência [...] acha-se presente em grau rudimentar em toda histeria, e que a tendência a tal dissociação [...] constitui o fenômeno básico dessa neurose” (1893-95, p. 47). |
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Breuer e Freud observaram que os sintomas histéricos têm causas possíveis de serem determinadas, mas que são desconhecidas dos próprios pacientes. Para estes, o sintoma adquire o caráter de corpo estranho, um acontecimento do qual eles não sabem a origem. A sustentação de tal situação se dá a partir da concepção de que representações inconscientes existem e são atuantes – grandes complexos de processos psíquicos importantes permanecem inteiramente inconscientes e coexistem com a vida mental consciente (Freud, 1893-95).
A clínica da histeria é o ponto central de onde partem todos os desenvolvimentos posteriores da psicanálise, e é interessante observar que a divisão psíquica e o conflito aí instaurado constituem elementos essenciais desse contexto, como podemos ver a partir dessa observação feita no caso de Lucy R.: “para a aquisição da histeria, vem a ser um sine qua non o desenvolvimento de uma incompatibilidade entre o ego e alguma idéia a ele apresentada” (Freud, 1893-95, p. 148). Se o conflito estava na gênese do problema, o tratamento também acompanhava em grande medida esse enfoque, e Freud continua: “o processo terapêutico, neste caso, consistiu em compelir o grupo psíquico que fora dividido a se reunir mais uma vez com a consciência do ego” (1893-95, p. 150). O tratamento concebido nos “Estudos sobre a histeria” é que o sintoma histérico desapareceria quando a lembrança fosse trazida à luz, e quando o afeto fosse traduzido em palavras.
Mesmo que tal concepção tenha passado por muitas reformulações, pois o tempo ajudou a demonstrar os seus limites e até mesmo o que havia de ingênuo nesse modo de pensar, muitos anos depois ainda escutamos algo dessas idéias nas seguintes palavras de Freud (1917b, p. 437): “Podemos expressar o objetivo de nossos esforços em diversas fórmulas: tornar consciente o que é inconsciente, remover as repressões, preencher lacunas da memória — tudo isso corresponde à mesma coisa”.
Podemos dizer que tudo isso corresponde a uma maior integração da personalidade1, a uma unificação do que antes se encontrava separado – a análise se baseia no efeito organizador e ativo que o discurso do sujeito tem sobre a sua história e a sua verdade, levando a novas configurações de subjetividade.
A clínica psicanalítica continua lidando hoje com os aspectos subjetivos em conflito e com o destino que cada sujeito dá para o seu modo de organização psíquica. Mas o que é, exatamente, esse conflito presente nas idéias de Freud a respeito do funcionamento psíquico do ser humano?2 Como esse tema aparece em sua obra? Vimos como chegou a perceber a divisão psíquica baseado no tratamento da histeria, mas trata-se de um só tipo de conflito psíquico ou vários outros são possíveis?
A imagem da alma humana como sendo constituída por contradições que lhe são intrínsecas é o que surge como o retrato fiel da concepção freudiana do homem, na qual observamos a presença irremediável de conflitos que fazem do mundo interior um verdadeiro campo de batalha.
A divisão psíquica foi um tema exaustivamente trabalhado por Freud, e sem o qual ele não poderia ter desvendado o significado dos sonhos e atos falhos, nem ingressado na decifração do sintoma neurótico, uma vez que todos esses fenômenos possuem em comum a presença de pelos menos duas intenções diferentes no interior da mente humana.
O exame de alguns dicionários de psicanálise nos fornece uma visão simples e clara a respeito de como definir o conflito que se encontra presente na obra de Freud. Chemama (1995, p. 34) afirma que o conflito é a “expressão de exigências internas inconciliáveis, tais como desejos e representações opostas, e, mais especificamente, de forças pulsionais antagônicas (o conflito psíquico pode ser manifesto ou latente)”.
Cabral (1971, p. 81) coloca de forma sucinta: “funcionamento simultâneo de impulsos opostos ou contraditórios. O estado em que a pessoa se encontra quando impulsos, tendências ou sentimentos antagônicos foram desencadeados”.
Já Rycroft (1975), além de definir, estabelece dois tipos de conflito:
“[...] oposição entre forças aparentemente ou realmente incompatíveis. O conflito interno ou psicológico pode dar-se entre impulsos instintuais (libidinais e agressivos, por exemplo) ou entre estruturas (ego e id, por exemplo)” (Rycroft, 1975, p. 62). |
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Podemos concluir, a partir dessas três definições, que o conflito psíquico pode envolver diferentes elementos: desejos, pulsões, sentimentos, representações, estruturas. No entanto, é o Vocabulário de Psicanálise, de Laplanche e Pontalis (1986), que melhor sintetiza os diferentes tipos de conflito, além de ressaltar a importância do tema:
“A psicanálise considera o conflito como constitutivo do ser humano, e isto em diversas perspectivas: conflito entre o desejo e a defesa, conflito entre os diferentes sistemas ou instâncias, conflitos entre as pulsões, e por fim o conflito edipiano, onde não apenas se defrontam desejos contrários, mas onde estes enfrentam a interdição” (Laplanche e Pontalis, 1986, p. 131). |
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Tomando as formulações teóricas acima revisadas, fica a questão: quais foram as construções teóricas de que Freud se serviu para dar conta disso em sua prática clínica? É preciso considerar qual o papel do conflito psíquico no surgimento das neuroses e, em seguida, qual a função que ele exerce no tratamento analítico. Na “Conferência XXII”, Freud se ocupa da etiologia das neuroses e passa a considerar os diversos fatores causais envolvidos, tendo como foco o desenvolvimento da libido. Ele demarca como possibilidades a fixação desta em um dado ponto, a regressão libidinal a pontos anteriores privilegiados de satisfação pulsional, a frustração na satisfação, e o conflito psíquico envolvendo a necessidade e as barreiras que se impõem como obstáculos ao seu apaziguamento. Nessa perspectiva, a neurose é um distúrbio caracterizado pela falta de satisfação adequada da libido. O papel do conflito é descrito como o choque entre a necessidade de satisfação da pulsão e o impedimento dos caminhos pelos quais essa satisfação viria a ocorrer, devido a uma desaprovação de uma parte da personalidade. “Uma parte da personalidade defende a causa de determinados desejos, enquanto outra parte se opõe a eles e os rechaça. Sem tal conflito não existe neurose” (Freud, 1917a, p. 352). Havendo, portanto, algum grau de impedimento de satisfação da pulsão devido ao conflito, o sujeito, a partir dessa frustração, precisará encontrar alguma forma substituta de satisfação, tendo a energia libidinal que foi anteriormente impedida de atingir seu destino um papel central na formação do sintoma.
Naturalmente, nem todo conflito psíquico é patogênico, mas o conflito patogênico é visto, nesse momento da obra de Freud, como resultando sempre de uma oposição entre as pulsões sexuais e as pulsões do ego.
A diferença principal parece ser a de que, no neurótico, um impulso faz parte do sistema pré-consciente/consciente e o outro impulso se encontra inconsciente, o que faz com que eles não possam chegar nunca a uma resolução. Enquanto isso, um conflito psíquico normal (não-patogênico) se dá entre dois impulsos que estão em pé de igualdade, ou seja, ambos estão no sistema pré-consciente/consciente, o que possibilita o acontecimento do confronto e a sua resolução. Realizar a transformação de um conflito patogênico em um conflito normal é o objetivo da psicoterapia (Freud, 1917b).
“Aquilo que empregamos sem dúvida deve ser a substituição do que está inconsciente pelo que é consciente, a tradução daquilo que é inconsciente para o que é consciente. Sim, é isso. Transformando a coisa inconsciente em consciente, suspendemos as repressões, removemos as precondições para a formação dos sintomas, transformamos o conflito patogênico em conflito normal, para o qual deve ser possível, de algum modo, encontrar uma solução” (Freud, 1917b, p.437).3 |
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Para essa difícil e tortuosa tarefa de enfrentamento dos conflitos e encontro com o próprio desejo inconsciente, é preciso que o paciente encontre um forte estímulo para efetuar mudanças, caso contrário poderá ficar estagnado no mesmo modo de agir atual que o levou à situação da doença.
É nesse sentido que a relação com o analista adquire uma importância essencial para que, através da associação livre, haja a produção de novas configurações de sentido, e o paciente se sinta capaz de escolher e tomar atitudes diferentes das que tem habitualmente tomado até então. É a transferência para com o analista que instiga o trabalho do paciente, evitando que este se acomode no seu atual estado, e forçando-o a lidar com aquilo que se oculta por detrás da repressão e do recalque.
Considerando tudo até aqui exposto, isto é, o papel fundamental do conflito na formação dos sintomas e na gênese do sofrimento que motiva o paciente a procurar um tratamento, bem como o fato de que o trabalho com este conflito há de ser um dos focos do percurso analítico, é necessário abordar as relações possíveis entre a solução de conflito e o fim da análise.
Para isso, voltaremos nossa atenção para o texto “Análise terminável e interminável” (1937), a fim de considerar algumas questões pertinentes sobre o tema. “É possível, mediante a terapia analítica, livrar-se de um conflito entre um instinto e o ego, ou de uma exigência instintual patogênica ao ego, de modo permanente e definitivo?” (Freud, 1937, p. 240). A resposta para essa pergunta envolve, naturalmente, muitas considerações, e iremos seguir aqui as reflexões feitas por Freud.
A resolução de um conflito não pode ser sinônimo de procurar silenciar por completo uma pulsão, já que isso dificilmente seria possível, e nem mesmo seria desejável. A resolução diz respeito a uma espécie de integração mais harmoniosa da pulsão com o ego, proporcionando um melhor funcionamento da personalidade como um todo, fato que desencadearia um alívio no sofrimento do sujeito, na medida em que isto o habilitaria a lidar melhor com a expressão da própria libido dentro do contexto das questões específicas que o afligem.
É verdade que, ainda que tal coisa possa ser atingida por um tratamento analítico, isso nunca acontecerá de forma total e completa. Não se trata de abolir a divisão psíquica – fato que seria impossível – contudo, a proposta visa reorganizar os elementos em questão de modo que uma dada configuração de força dessa pulsão possa encontrar um caminho mais sintônico e menos destoante com os objetivos do ego. Isso significa que a resolução conseguida em um dado momento de um tratamento é extremamente frágil, para dizer o mínimo, uma vez que qualquer mudança na força desses componentes (pulsão e ego) poderá provocar uma alteração que leve o paciente de volta ao mesmo tipo de conflito.
Assim, para abordar o assunto de forma rigorosa, podemos dizer que no início do tratamento não há garantias de que haverá resolução do conflito (embora essa seja uma possibilidade real) e também não há garantias de que, uma vez resolvido o conflito, ele não possa voltar a ser ativo no futuro. Por último, é possível ainda que um conflito em estado latente não seja trabalhado durante uma análise, e venha a se tornar um problema muito tempo depois de já terminado um determinado tratamento bem sucedido para outro problema (Freud, 1937).
No entanto, levando em conta todas essas ressalvas, também existem conquistas e, para fins práticos, o fim da análise pode ser facilmente delimitado como o momento em que o analista e o paciente julgam que este último superou suficientemente o sofrimento proporcionado por seus sintomas e trabalhou de maneira igualmente significativa e suficiente suas angústias, inibições, resistências e materiais recalcados. Isso não significa que teremos como produto final um sujeito perfeito e acabado, mas apenas que o trabalho realizou aquilo que foi considerado mais importante e que não se encontra mais o desejo de continuar o tratamento, estando o paciente seguro para enfrentar as questões da vida por conta própria, sem o auxílio do analista. É óbvio que nenhuma dessas conquistas é um ponto final definitivo, e que o paciente poderá voltar a entrar em análise, mas isso diz respeito a possibilidades futuras, enquanto o fim prático se refere à interrupção do tratamento de acordo com o estado atual.
Vimos que o contexto inicial da investigação de Freud foi a clínica da histeria, e, por isso, voltamos agora ao “Fragmento da análise de um caso de histeria” (1905), o famoso caso Dora, para averiguar até que ponto o entendimento do conflito pode auxiliar na leitura de um história específica de análise.
Nosso objetivo central foi, trabalhando esse caso clássico de Freud, analisar que papel o conflito desempenha neste. O caso Dora foi escolhido ainda pelo seguinte motivo: ele é o primeiro dos cinco mais famosos casos a ser publicado (Hans, o Homem dos ratos, Schreber e o Homem dos lobos viriam todos depois), e, portanto, pode nos ajudar a entender também como a noção de conflito que surgiu nos “Estudos sobre a histeria” foi desenvolvida por Freud. Embora tenha sido publicado em 1905, o tratamento ocorreu no ano de 1900, em um período que se localiza logo após a publicação de “A Interpretação dos Sonhos”. Que elementos da história de Dora permitiram levar a teoria psicanalítica da histeria adiante, enquanto uma manifestação do conflito psíquico?
Aproximando o tema geral para os eventos e particularidades de uma história singular, podemos dar ao assunto um tratamento equilibrado entre a discussão teórica sobre o que há de universal no conflito e qual a manifestação concreta que é assumida por este na vida de uma paciente, segundo o relato feito por Freud.
Dora, uma moça de 18 anos, filha de um grande industrial, apresentava crises de tosse que duravam de 3 a 5 semanas, nas quais passava por momentos em que perdia a voz. Estava desanimada, tinha problemas de relacionamento com os pais e chegou a escrever uma carta de suicídio.
No decorrer dos encontros com a paciente, Freud encontra a intrincada história por trás desses sintomas naquilo que inicialmente era um relacionamento íntimo de amizade desenvolvido entre Dora e seus pais e o Sr. e a Sra. K. No entanto, o que acontece é que o pai de Dora passa a manter, em segredo, um caso com a Sra. K.. Dora acaba descobrindo o relacionamento extraconjugal de seu pai e surge algo que complica ainda mais a situação: o Sr. K. tenta conquistar Dora. Uma rede de mentiras e ocultações é montada e Dora sente que ela é, implicitamente, colocada e oferecida por seu pai para o Sr. K. para que este mantenha o seu silêncio e continue ignorando o caso da esposa. Revoltada com a situação, Dora foge da proposta amorosa que o Sr. K. lhe faz durante um passeio, e exige que o pai corte relações com toda a família K.
Para entender porque essa situação resultou em um quadro histérico, é preciso seguir cuidadosamente a análise dos sentimentos de Dora feita por Freud. Ela sente alguma atração pelo Sr. K., já que suas primeiras crises de tosse coincidiram com os períodos de viagem do mesmo, podendo ser interpretadas como um sinal da falta que ela sentia da sua presença (Freud, 1905). Ao mesmo tempo, demonstra justamente o contrário em duas situações: quando é beijada por ele, aos 14 anos de idade, ela foge sentindo repugnância; quando ele tenta conquistá-la durante um passeio, Dora o recusa e denuncia seu comportamento para o pai.
Esse tipo de atitude fortemente ambivalente e confusa está presente também em outras relações de Dora: a forte recriminação dela para com as ações do pai escondia simultaneamente o amor que ela sentia, a ponto de compactuar com o adultério cometido por ele, nada revelando a respeito do que já sabia para a sua mãe. Por fim, sua exigência de que fossem cortadas relações com os K., e sua demonstração de que invejava a Sra. K. por esta ter o amor de seu pai, esconderiam, segundo Freud, algo que Dora nem sequer suspeitava: o ciúme que ela deveria sentir pelo fato de o pai ter o amor da Sra. K.!
Estaria em jogo uma pulsão homossexual que teria passado despercebida pela paciente, e que se justificava pela relação que ela havia estabelecido com a Sra. K. antes que o caso desta com o seu pai tivesse começado. Quando Dora visitava os K., costumava partilhar o mesmo quarto que a Sra. K., enquanto o marido desta era desalojado; conversavam sobre todos os assuntos, tendo passado anos em que as duas mantinham uma relação de íntima amizade. Portanto, ela devia se sentir traída agora que a Sra. K. não mais a recebia com tanto afeto, pois estava envolvida amorosamente com o seu pai.
Observando o quadro exposto, podemos concluir que Dora nutria sentimentos contraditórios para com o pai, o Sr. K e a Sra. K., pois tinha motivos para simultaneamente amá-los e odiá-los. O pai por quem nutria um amor filial intenso convertera-se num adúltero; a Sra. K., com quem outrora partilhara bons momentos, era agora a amante de seu pai; O Sr. K., por quem Dora se sentia atraída, era o credor que a recebia como pagamento.
Mesmo assim, tal fato não teria sido suficiente para explicar o desenvolvimento da histeria, e podemos apontar como o fator distintivo para que seu quadro tenha sido patológico o fato de que ela não tinha claro para si mesma a complexa configuração de sentimentos contraditórios que ela havia formado. Ignorante do próprio estado, pois muito do que sentia estava fora do seu campo de percepção consciente, Dora não tinha como avaliar corretamente qual o sentido das experiências pelas quais passava e que a rodeavam, bem como se encontrava incapaz de assumir claramente o seu próprio desejo.
Não é por acaso que Lacan (1952, p. 218), baseado no texto de Freud, cria um diálogo no qual Dora pergunta: “Esses fatos estão aí, dizem respeito à realidade, e não a mim mesma. O que o senhor quer mudar nisso aí?”. A sua postura é a de quem não teve escolha, sendo apenas vítima de uma situação que foi criada pelos outros, sem que houvesse sua influência ou controle. Freud, no entanto, responde: “Veja qual é sua própria parte na desordem de que você se queixa”. Essa frase que Lacan coloca na boca de Freud é paradigmática enquanto intervenção que procura fazer com que o sujeito se responsabilize pelas próprias escolhas, ainda que estas sejam inconscientes.
“O ‘não saber’ do paciente histérico seria, de fato, um ‘não querer saber’” (Freud, 1893-95, p. 284), e é esse nó de não-conhecimento que aprisiona Dora e se expressa através do sintoma. O desencadeamento da histeria neste caso pode ser entendido então como a expressão dos diversos sentimentos conflitantes e não elaborados conscientemente. É uma expressão da divisão da consciência, sendo o conflito entre o sistema inconsciente e o sistema consciente uma condição essencial para o entendimento do problema. Se Dora houvesse passado pela mesma situação, com os mesmos sentimentos opostos a respeito dos personagens da sua história, porém tivesse conseguido manter essas contradições dentro do campo da consciência, ela teria passado por um sofrimento normal, e não neurótico.4
Aqui, cumpre explicitar que, ao falar sobre normalidade e neurose, não estamos nos referindo à concepção estrutural que Lacan lê na obra de Freud, e que concebe três modos de resposta ao enigma do complexo de Édipo – possibilitando a estruturação do sujeito como neurótico, psicótico ou perverso. Estamos nos referindo à diferença entre um sofrer demais indicativo de problemas psicológicos e o sofrimento normal, inerente à condição humana. Com isso, julgamos estar seguindo a perspectiva de Freud (1893-95, p. 316), que – no final da seção sobre psicoterapia da histeria – fala sobre transformar o sofrimento histérico em infelicidade comum.
Voltando ao “Fragmento da análise de um caso de histeria” (Freud, 1905), é interessante observar que a descrição realizada por Freud se preocupa em pintar um quadro vivo do estado subjetivo da paciente, sem recorrer muito a conceitos e teoria. O que aparece como foco é a comunicação da dinâmica psicológica da paciente. Assim, quando observamos o papel do conflito nesse caso, não precisamos recorrer a esquemas complicados, e sim perceber a importância qualitativa da intensidade dos sentimentos em questão, que se voltavam para pessoas afetivamente importantes e próximas da paciente, bem como a importância da divisão psíquica, ocasionando aquilo que poderíamos chamar de um erro de comunicação interno.
Na personalidade de Dora, não encontramos a integração que seria razoável esperar entre pensamento, desejo, sentimento e ação. Isto é, que ela: 1) desejando o Sr. K., optasse por relacionar-se amorosamente com ele; 2) não desejando o Sr. K., rejeitasse sua proposta; 3) Estando em dúvida, resolvesse o conflito no plano consciente, tomando uma decisão. Mas o desenlace é justamente o da não-integração, que resulta em: 4) um desejo que rejeita, ou um rejeitar que deseja, sem consciência clara dessa confusão.
Dora sente-se atraída inconscientemente pelo Sr. K., mas isso é contrário ao seu julgamento consciente que considera inaceitável cumprir o papel de objeto de troca na relação do seu pai com a família K. Assim, ela rejeita o Sr. K., mas ao mesmo tempo demonstra sua afeição através do sintoma, que surge como expressão do paradoxo. Tal procedimento acontece não só por causa do desconhecimento proporcionado pela divisão psíquica, mas é importante frisar que é um processo que acontece em estado desconhecimento. Isto é, os passos que levam a tal estado não são acompanhados pela consciência da paciente, ou são apenas parcialmente acompanhados.
No caso de Lucy R., relatado nos “Estudos sobre a histeria” (1893-95, p.144), Freud observa que, ao comunicar-lhe a interpretação de que ela estaria apaixonada pelo patrão, Lucy demonstra esse interessante estado de espírito em que “ao mesmo tempo se sabe e não se sabe de alguma coisa”. Ora, é interessante notar o caráter histórico de formação do sintoma, e que ele não começa subitamente, mas é fruto de uma dinâmica psíquica ao longo dos anos. Um conjunto de experiências, de associações, de traumas, imaginações, interpretações, inferências arbitrárias, crenças, pressupostos, tudo isso se encontra entrelaçado e é formado ao longo de uma história de vida psíquica.
O caso de Dora não é diferente, e o problema que a leva ao consultório de Freud, as crises de tosse, pode ser caracterizado como o produto de uma lenta fermentação de experiências de relacionamentos interpessoais. Ao longo desse período, Dora sutilmente vai sonegando informações importantes acerca de si mesma, sem se dar conta do que está fazendo e sem perceber que isso é o que ocasiona o seu funcionamento neurótico. O tratamento analítico proporciona uma oportunidade de que ela fale, e ao falar para Freud, ela fala na verdade para si mesma – a sua parte que sabe pode finalmente começar a contar a história que falta para a parte que ignora.
Nos dias de hoje, em que a psicanálise é mencionada em vários cursos de psicologia por todo o mundo, é comum que o primeiro contato com as idéias de Freud seja através de manuais sobre teorias da personalidade ou outros resumos semelhantes. Os conceitos são explicados como elementos já prontos, estáticos, formando um sistema de compreensão que pode facilmente passar a impressão de uma teoria fechada e acabada.
A leitura dos originais, no entanto, revela uma psicanálise muito diferente daquela que é oferecida em versão formatada para consumo rápido. Só consultando-os é possível ver os conceitos em formação, se constituindo gradualmente a partir da observação direta dos fatos apresentados pelos casos clínicos. Seguir os passos de Breuer e Freud nos “Estudos sobre a histeria”, por exemplo, é, de certa forma, poder participar da invenção da psicanálise, acompanhando em primeira mão o tratamento original que é dado àquilo que constitui a matéria prima deste artigo: o conflito psíquico.
Mais do que isso, é somente ao perceber o conflito dentro do contexto de uma história pessoal que podemos entender o seu papel na neurose. Isso ficou especialmente claro no exame do caso Dora, que revela a simplicidade do mecanismo do conflito: o que dele importa é muito mais a carga afetiva que determina sua posição central no drama da história, bem como a sua falta de elaboração consciente. A tensão resultante é o que produz o sintoma e o sofrimento, que podem ser vistos como expressões naturais da formação conflituosa de não-ditos acumulada no aparelho psíquico.
Com isso, esperamos ter chamado a atenção para a observação da dinâmica psíquica de um caso específico como a melhor forma de compreender o que é o conflito trabalhado na psicanálise. Só assim podemos obter a base a partir da qual se poderá melhor compreender e discutir toda a teoria que viria posteriormente. Foi se aproximando dos fatos da vida emocional dos seus pacientes sem concepções prévias que Freud pôde enxergar a luta em curso, e é repetindo tal experiência que podemos verificar os seus achados.
Notas
1. Considerando que a palavra personalidade foi utilizada aqui significando o conjunto das três instâncias que constituem a segunda tópica freudiana (isso, eu e supereu), bem como a dinâmica estabelecida pela interação destas três instâncias como um todo, com as suas devidas conseqüências para a subjetividade e expressões comportamentais de um dado sujeito.
2. Usamos propositalmente as expressões “idéia de conflito psíquico”, “noção de conflito psíquico” e “conceito de conflito psíquico” como sendo equivalentes. Com isso apontamos para uma certa abrangência e imprecisão do termo, já que não o podemos tomar como sendo de delimitação clara e unívoca. Isso porque o tema do conflito psíquico aparece espalhado por toda a obra de Freud, engloba vários processos e apresenta muitas expressões diferentes, como veremos adiante, o que faz deste termo uma noção ou conceito de muitas facetas.
3. Esta passagem específica dá ênfase à dimensão do possível dentro da prática analítica. O que não significa que não há vasto material impossível de ser solucionável ou esclarecido em um sintoma neurótico – porque de fato há, e mesmo o que é esclarecido só o pode ser parcialmente, de forma incompleta e duvidosa. Mas o nosso foco deliberadamente está em renovar aqui a descrição daquilo que o sujeito cria de sentido na experiência analítica e produz efeitos terapêuticos, isto é, diminuindo sofrimento ou promovendo o encontro do sujeito com aquilo que é o seu próprio bem, isto é, na medida em que ocorre transformação de conflitos patogênicos em conflitos normais isso possibilita ao sujeito coincidir mais frequentemente com o próprio desejo.
4. Sobre a diferença entre conflito normal e patogênico ver aquilo que já foi comentado acima com base em Freud, 1917b.
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Cabral, A. (1971) Dicionário de psicologia e psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura.
Chemama, R. (Org.) (1995). Dicionário de psicanálise (Trad. Francisco Franke Settineri). Porto Alegre: Artes Médicas.
Freud, S. (1996). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
_______. (1893-95) Estudos sobre a histeria. Vol. II, p. 13-316.
_______. (1896) A etiologia da histeria. Vol. III, p. 187-215.
_______. (1905) Fragmento da análise de um caso de histeria. Vol. VII, p. 15-116.
_______. (1914) A história do movimento psicanalítico. Vol. XIV, p. 15-73.
_______. (1917a) Conferência XXII. Vol. XVI, p. 343-360.
_______. (1917b) Conferência XXVII. Vol. XVI, p.433-448.
_______. (1924) Uma breve descrição da psicanálise. Vol. XIX, p. 213-234.
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Gay, P. (1989) Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras.
Lacan, J. (1952). Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 214-225.
Laplanche, J., & Pontalis, J.B. (1986) Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.
Rycroft, C. (1975) Dicionário crítico de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.
Texto recebido em: 04/01/2009
Aprovado em: 12/03/2009
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