“O problema não sou eu, é minha barriga”1
“It's not me, it's my belly!”


Paola Salinas
Analista Praticante
Membro Aderente da EBP-São Paulo
Associada ao Clin-a
Psicóloga contratada e Supervisora do Ambulatório de Psicologia Médica do HCFMRP-USP
paolasalinas11@hotmail.com

Resumo

O texto relata um caso clínico onde, embora os sintomas possam ser contemporâneos (obesidade e bulimia), trata-se de um caso de histeria clássica, onde, além de questionar o desejo, o sujeito também é tomado pelo mais-de-gozar presentificado na compulsão em comer. A autora distingue uma estrutura e outra e faz a hipótese da ocorrência de um fenômeno psicossomático no ponto onde a função paterna falhou.

Palavras-chave: psicanálise, obesidade, caso clínico, Édipo.

 

“It's not me, it's my belly!”


Abstract

This is a case presentation in which, although the patient presents contemporary symptoms (obesity and bulimia), it is a case of classic hysteria, where, in addition to questioning desire, the subject is also taken by the plus-de-jouir depicted by the compulsive eating. The author differentiates both structures and works with the hypothesis that a psychosomatic phenomenon occurs when the father's function failed.

Keywords: psychoanalysis, obesity, case presentation, Oedipus

 
“(...) o ato de comer - que a pulsão oral leva ao extremo – é no fundo, por si, uma tendência contrária à perda do objeto introduzida pela ação do Outro” (Recalcati, 2003, p. 52).

A barriga

Lara é uma mulher jovem, casada e obesa. A necessidade de controle alimentar que motivou o encaminhamento era devida ao aumento da taxa de seu triglicérides, o que resultou na ocorrência de duas pancreatites graves que a colocaram em risco de morte. Lara foi encaminhada pela equipe de Endocrinologia de um Hospital Geral Universitário, para o serviço de psicologia do mesmo hospital.

A primeira pancreatite aguda foi aos 15 anos, sendo necessário realizar cirurgia de emergência. Na ocasião, colocou-se uma tela de proteção para melhor cicatrização do abdômen, a qual foi rejeitada pelo organismo provocando inflamações e erupções. Desde então seu abdômen está aberto.

Submeteu-se a mais de vinte cirurgias para retirar abscessos, pedaços da tela; os “buracos” por onde o corpo estranho é expulso não cicatrizam, demandando curativos constantes e, por vezes, novas cirurgias.

 

A morte

Iniciou o tratamento em grupo, opinando de modo sensato e implicado nas histórias dos demais pacientes. Tal implicação desaparecia quando se tratava de falar de si. Quase não falava, estava tudo bem, era difícil tocar a vida com “a barriga aberta”, “mas fazer o quê se não tem nada que eu possa fazer, vou vivendo”.

Era muito preocupada com a mãe, portadora de um câncer grave, ficando claro que era a única companhia que a mãe contava. Sentia que não podia deixá-la sozinha, o que não era problema, visto que sua vida parou após as diversas cirurgias e não trabalhava nem estudava. Tudo era interrompido por uma nova cirurgia, então ficava com a mãe.

Amava seu marido e eram felizes. Companheiro, aproximou-se dela desde antes da primeira cirurgia, foi seu primeiro namorado. A mãe chegou a sentir ciúmes, mas isso não a afetou justificando: “é meu marido”. De fato ele faz uma barra à proximidade excessiva entre mãe e filha, colocando algo do desejo dessa mulher.

O esforço da conquista foi todo dele. Ela não saía muito de casa, mesmo antes de qualquer problema de saúde, se conheceram na casa de uma amiga e ele a visitava constantemente até começarem a namorar. O “pretendente” se deslocava até sua casa, ela não precisava sair.

O número de pacientes do grupo de tratamento do qual participava diminuiu, servindo para escancarar seu silêncio. Reconhecendo a dificuldade que tinha em falar de si, aceitou a proposta de uma sessão individual, apesar da ansiedade que isso lhe causava.

Nesse encontro queixou-se de não conseguir emagrecer nem seguir a dieta. Falou da compulsão em comer e da sua impotência. “Sempre fui gordinha e isso nunca atrapalhou”, mas agora tinha que perder peso, pois seu triglicérides estava alto e não abaixava com a medicação. Falava dos fatos racionalmente, inclusive da sua incapacidade em controlar-se. Neste ponto silencio (sou eu quem silencia; talvez possa colocar “Neste ponto, a praticante silencia...”), apontando apenas que no seu caso havia outra questão: o aumento do triglicérides colocava a possibilidade de sua morte (devido ao aumento da probabilidade de ocorrência de outra pancreatite).

A pontuação crua pareceu não chocá-la, mas localizá-la. Assumiu um ar de resignação e disse que “era disso que não queria falar”.

Voltou falando da angústia (ela disse, não expressou na sessão) com o que ouvira, mas na verdade “não tem vivido há muito tempo”.

Aparece de entrada a relação com a mãe, grudada nela, não vive. Grudada é um significante que a representa nesta relação que sempre foi assim, é a única filha mulher, companhia para a mãe. O pai bebia e não tratava bem à mãe, os irmãos eram bons, mas não serviam como companhia. Ela é o objeto que a satisfaz a mãe e o sujeito que se responsabiliza pelos cuidados com ela.

Ao fim do grupo decide continuar o atendimento individual, foi um manejo na transferência deixá-la ainda participar do grupo e ter sessões individuais espaçadas. Isso porque achava esquisito falar de suas coisas para alguém estranho, evitava o tratamento e o grude comigo, pois tinha medo de ficar dependente.

 

A mãe e a compulsão

Não quer pensar, prefere ir tocando as coisas sem pensar muito. Em contrapartida diz que o fato de eu ter levantado a perspectiva da morte foi importante, pois mesmo que soubesse, ouvir tem outro efeito.

Começa a questionar a relação com a mãe: “parece até que ela não gosta se eu faço algo com uma amiga, o que é raro porque eu não tenho muitas amigas, uma ou duas, amiga é só minha mãe”, diz com certa crítica.

Interrompeu muitas coisas devido ao “problema da barriga”. Deixou de estudar, trabalhar, não tirou carteira de habilitação, em parte por falta de desejo, e em outros momentos por ser interrompida pela necessidade de nova cirurgia, tendo que “parar tudo de novo”.

Durante o tratamento fez pequenas cirurgias, mas o sujeito pôde aparecer na escolha. Decidiu começar um curso para agente comunitário de saúde, tirar carteira de motorista e começou a fazer passeios sem a mãe. Decidia, então, não mais ficar parada. Sustentou tais mudanças mesmo com a piora do câncer da mãe. Cuidou dela, mas “reservou” um tempo para si.

Na mesma época soube que seria necessária nova cirurgia, desta vez disse que não, visto que não havia garantia de resolução do problema. Optou por ficar como estava, fazendo curativos e não parar sua vida novamente. Esta decisão teve um efeito de vivificação deste sujeito, cabendo esclarecer que a não realização da cirurgia, discutida por ela com o médico, não a colocava em risco.

Em meio a estes efeitos terapêuticos disse que estava “chorando muito, do nada; sem qualquer motivo começo a chorar e não consigo parar”, isso permeou este período e cessou na medida em que pude conter o não saber a respeito da causa ou da cura do mal-estar, e ela tomar decisões em relação ao andamento de sua vida.

Manteve um bom período de dieta chegando a perder nove quilos Contudo, havia a compulsão, “quando vê, comeu tudo que viu pela frente”.

Após um afastamento da analista retorna relatando a piora da mãe; tem ajudado-a e mantido a independência. Concluiu o curso, está na auto-escola, o peso está constante e mantém as compulsões não muito freqüentes. O marido está trabalhando em outra cidade e foi vê-lo apesar da mãe não querer que viajasse, “pelo seu problema na barriga”.

A compulsão é algo que atravessa sua vontade. Com a saída do marido piorou, em casa sozinha à noite, às vezes, tem a compulsão. Diz que em alguns momentos chega a provocar vômitos, mas não é freqüente.

No meio de um não saber a esse respeito comenta que tem se lembrado de sua infância. Havia certa “amnésia” até então, não se lembrava de nada, somente do fato do pai beber e brigar com sua mãe na época de sua adolescência. Passa a lembrar da casa, de brincadeiras com os irmãos e no meio disso vem uma cena decisiva:

“Meu pai tava brigando com minha mãe, xingando, gritando, e ela quieta, ela sempre ficava quieta, de cabeça abaixada não falava nada. Ele brigando e ela me dando o peito. [...] é estranho, mas eu me lembro dela chorando e me dando o peito. [...] eu não sei se eu pedi, se eu tava chorando, vai ver que eu vendo a briga tava chorando e ela me deu para me acalmar, não sei, mas me chama a atenção dela chorando e me dando o peito [...] e eu era grandinha, já não era bebê, devia andar já. Não era mais para mamar no peito [...]”.

Enfatizo a importância da associação quando se questionava sobre a compulsão, “frente à angustia: a comida”, digo. Ela assente dizendo que de fato tem “uma angústia, um vazio que parece que a comida preenche, mas é por pouco tempo, depois vem a culpa e fica pior”.

Falta à sessão que teríamos. No corredor vem angustiada com um encaminhamento para a psiquiatria dado pela nutróloga, perguntando onde é o balcão. Questiono-a e me pergunta se eu penso ser necessário tal atendimento. Coloco que não, se não já a teria encaminhado. Aliviada me diz que também acha que não precisa e que “não é bulimia”, embora saiba que são “comportamentos bulímicos”. Marca a recusa em enquadrar-se no discurso médico, colocando sua particularidade como um comportamento que pretendia mudar, associado à cena da infância.

Na sessão seguinte conta como foi tomada como objeto a ser criticado pela médica “ríspida e brava, falando como se já a conhecesse, como se soubesse de toda sua vida”. “Cheguei a pensar que talvez você tivesse dito algo, ou escrito no prontuário, mas vi que não. Ela falava e me dava bronca, chegou a gritar comigo, dizendo que eu tinha que me ajudar, que eu tinha que parar com as compulsões”. Só conseguiu chorar, “e ela dizia, não adianta chorar não, você tem que parar com isso!”. Sentiu-se mal, mas sabe que a médica tem razão, “eu sei que tenho que parar com a compulsão, mas eu não consigo [...], faz mais de quinze dias que eu não provoco vômito, desde que eu te contei, e também não tenho tido compulsão”.

Outro ponto que a angustiou a partir da fala da médica, refere-se à felicidade e à necessidade de agir em sua vida. Retoma o que escutou: “tem gente muito pior que você se esforçando para ser feliz e você tem tudo e não faz nada”. Na semana anterior havia visitado a unidade de hemodiálise do hospital e tido esta sensação, “a vida deles é pior que a minha e eles estão lá fazendo algo pra ser feliz e eu, é só parar de comer que tudo melhoraria”.

No decorrer da sessão seguinte diz estar bem, fala da possibilidade de adotar um bebê que pode vir a ser dado em adoção em sua cidade. É um desejo antigo dela e do marido, está esperançosa. Questiona-se se conseguirá ser boa mãe, se não deveria primeiro curar-se, curar-se da compulsão e da barriga, para depois ser mãe.

Telefona-me dizendo que foi chamada para fazer nova cirurgia e não vai, seria uma das tantas para abrir, retirar tela e fechar, nenhum procedimento novo. Não quer operar, não quer parar sua vida agora e pergunta o que eu acho. Visto que não há risco para sua saúde, digo que pode decidir a respeito e que convém que ela diga aos médicos. Falta na sessão seguinte.

Telefono, me diz que passou mal, está grávida. Esta gravidez é contra indicada pela distensão abdominal necessária, do mesmo modo que era “impossível” segundo diagnóstico da Ginecologia.
É outro uso da barriga. Antes a prendia à mãe e a deixava parada, e agora é portadora de um não saber. Questiona-se como será levar a gestação adiante com todas as complicações físicas. Como ser mãe, principalmente agora que a mãe piora e esta em fase terminal? Chega a perguntar-se se a gravidez não teria sido uma saída frente à morte anunciada da mãe. Se assim for, um filho-tampão, mas que porta em si um buraco, o da morte e do não saber.

Ao falar deste filho o marido sempre está incluso. Pergunta-se se é uma felicidade possível, visto que não acreditava poder ser feliz sem a mãe.

Depois da morte da mãe, diz que pode vir a ser feliz, mas que se trata de felicidades diferentes.

 

Os sintomas

Se por um lado podemos visualizar a rede simbólica que toca a obesidade e a compulsão articulada à cena familiar, a produção no corpo do aumento do triglicérides ultrapassa a lógica edipiana de entendimento do sintoma.

Lara expressa o uso sintomático da barriga no comentário jocoso no início do seu tratamento, que dá titulo a este artigo, localiza o sujeito e o amarra ao Outro materno ao mesmo tempo em que a desimplica do seu sintoma. Equivale sujeito à barriga, não é responsabilidade dela.

Este uso de sustentáculo do lugar de objeto para a satisfação materna se mantém com a apresentação da compulsão que reedita o empanzinamento frente à angústia e o lugar de escolha exclusiva pela sua companhia em qualquer situação, inclusive no meio da briga do casal parental. É pela barriga que está presa à mãe e nada pode fazer, pois o problema não é ela.

A obesidade que mantinha o sujeito alienado à mãe, evidencia a não separação (Recalcati, 2003, p. 52), apagando o desejo, fixando-se no lugar de filha impedida pela barriga e gozada pela compulsão. Se tomarmos a indicação de Recalcati de que o simbólico barra o corpo animal e “o apego do homem à matéria original do alimento-mãe” (Ibid.), verificamos aí a dificuldade da separação, sendo a partir da relação ao objeto alimento que o sujeito busca manter-se preso à Coisa materna.

Embora os sintomas possam ser contemporâneos (obesidade e bulimia), trata-se de uma histérica clássica que, além de questionar o desejo, é tomada pelo mais-de-gozar presentificado na compulsão. Tendo em conta que “para a pulsão fazer seu percurso e retornar ao ponto de partida auto-erótico, serve-se do Outro no qual procurará, para se satisfazer, do que se faz ver, escutar, devorar ou cagar (objetos da pulsão). Ou seja, a pulsão encontra então os semblantes necessários ao sustento de seu auto-erotismo no campo do Outro, os artifícios sociais, a cultura e a língua” (Kusnierek, 2008, p. 45), Lara paga com o seu corpo pelo lugar de objeto de satisfação da mãe, identificada a esse objeto, exemplo de novo sintoma dentro de uma estrutura histérica clássica, onde a obesidade se articula ao Édipo e se coloca como sintomática.

No plano pulsional o sujeito é agido, mais do que age, articulando-se a isso a observação da obesidade ser uma patologia predominantemente da infância, quando se está mais suscetível à demanda do Outro. Cito: “[...] a opressão do sujeito como objeto do Outro, ou seja, uma alienação em sentido único que nos esclarece sobre a obesidade como patologia estruturalmente infantil” (Recalcati, 2003, p. 282, tradução minha).

A passagem de filha à mãe, passando pela barriga, coloca um redimensionamento deste sujeito na dialética do desejo numa aposta a ser vista. Abre a possibilidade de um outro tipo de felicidade, onde a alienação possa ter outro estatuto.

Fica a questão frente à possibilidade do advir de um sujeito, seu filho, que não se fixe na alienação a ela, melhor dizendo, que estatuto esta alienação pode vir a tomar nesta relação.
Por outro lado, como pensar o aumento do triglicérides? Teria o mesmo estatuto de endereçamento ao Outro? O real do corpo expresso aqui na alteração metabólica vem fazer corte à saída sintomática encontrada pelo sujeito (sintoma conversivo, endereçado ao Outro), pois é a partir dessa alteração que a obesidade não pode mais ser sustentada.

É a barra do orgânico, colocando a possibilidade da morte, que faz ruir a solução neurótica, desestabilizando o sujeito, sendo necessária a dieta. Este momento, aos quinze anos, marca uma tentativa de separação no momento em que o sujeito se defronta minimamente com a questão sexual. Relata que começava as primeiras paqueras na escola quando foi interrompida pela urgência do quadro, da cirurgia e do afastamento do convívio escolar e social. A partir daí passou a ser “vigiada” por todos, mãe, pai e irmãos, que temiam por ela, fixando-a em casa, sob seus olhos. Frente a isso não reagiu, o marido - então paquera contingencial - vem até ela como um outro laço possível.

A marca no metabolismo do corpo, para além do significante edipiano comida, o contorna, afeta o corpo neste ponto especifico. Limita a ingestão e atribui a ela conseqüências.

Poderíamos fazer a hipótese da ocorrência de um FPS2 naquilo que a função paterna fez falha?

O tratamento afeta este ponto a partir da inserção da política do desejo, e podemos localizar neste registro a estabilização do triglicérides no momento da gestação, quando a medicação para seu controle foi suspensa e na própria sustentação da gestação.

Atualmente, seu filho está com um ano. Lara mudou-se para a cidade onde o marido trabalha e o triglicérides tem algumas variações. Está feliz, o que não equivale a dizer “sem angústia”, como me disse em nosso último encontro.

 

Notas

1. Trabalho apresentado no XVII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano - Psicanálise e Felicidade: Sintoma, efeitos terapêuticos e algo mais, Rio de Janeiro, novembro de 2008.

2. FPS: fenômeno psicossomático.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

RECALCATI, M. (2003) El demasiado lleno del cuerpo, in: Clinica del vacío: Anorexias, dependencias y psicosis. Madrid (Espana): Sintesis Editorial, 2003.

KUSNIEREK, M. (2008) Bulimia, in AMP. Scilicet. Os objetos a na experiência psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008.

ZBRUN, M. (2002) Gozar de um corpo: a prática lacaniana como tratamento do Real pelo Simbólico, in: Latusa, nº 7. Rio de Janeiro: EBP-RJ, 2002.

ZUCCHI, M. Algumas observações sobre a clínica da obesidade em psicanálise, in: Latusa, nº 7. Rio de Janeiro: EBP-RJ, 2002.

 

Texto recebido em: 11/11/2008
Aprovado em: 04/02/2009