Efeito Fátima: lições tiradas de soluções espontâneas para problemas graves
Fátima effect: lessons taken from spontaneous solutions to serious problems


Andreza Rocha
Professora da Rede Municipal de Ensino de São Paulo
Membro do Corpo de Formação em Psicanálise do Inst. de Psicanálise Lacaniana (IPLA)
Mestre em Educação / Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP)
anrocha@usp.br

Claudia Rosa Riolfi
Psicanalista
Membro do Corpo de Formação em Psicanálise do Instituto de Psicanálise Lacaniana (IPLA)
Docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP)
Doutora em Lingüística
riolfi@usp.br

Enio Sugiyama Junior
Membro do Corpo de Formação em Psicanálise do Instituto de Psicanálise Lacaniana (IPLA)
Mestrando em Filologia e Língua Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP.
eniojr@usp.br

Patricia Furlan Maluf Germano
Membro do Corpo de Formação em Psicanálise do Instituto de Psicanálise Lacaniana (IPLA)
Graduanda em Psicologia pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP)
pfmgermano@yahoo.com.br

Maria Helena Barbosa Bogochvol
Psicanalista
Membro do Corpo de Formação em Psicanálise do Instituto de Psicanálise Lacaniana (IPLA)
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise - São Paulo
mariahelenabarbosa@uol.com.br

Renato Chiavassa
Médico
Membro do Corpo de Formação em Psicanálise do Instituto de Psicanálise Lacaniana (IPLA)
Graduado em Medicina Interna e Terapia Intensiva - F.M.Santos e H.C.FMUSP
Especialista em T.I. pela A.M.I.B.
Especilialista em Geriatria - Cardiologia – Nutrologia.
renatochiavassa@uol.com.br

Resumo

Para investigar a maneira pela qual uma pessoa pode se responsabilizar pelo encontro com o acaso, tomamos como objeto de estudo o filme Diogo e Fátima: desautorizando o sofrimento (Audiovisual Quark, 2008). Por meio da análise da história dessa mãe e de seu filho, mostramos como se instaura o que denominamos Efeito Fátima, a saber, o estabelecimento de um estatuto ético ao corpo como resultado de um modo singular de interpretar as contingências da vida. Concluímos que a maneira como Fátima conduz sua vida é paradigmático de como Lacan interpreta a posição feminina, a de não fazer conjunto. Vivendo de modo coerente com a globalização, Fátima aumentou a carga de sua responsabilidade pessoal e, ao fazê-lo, inventou sua vida, abrindo lugar para que seu filho não se posicionasse como uma frágil vítima de um destino trágico.

Palavras-chave: psicanálise, genética, corpo, interpretação, pós-modernidade.

 

Fátima effect: lessons taken from spontaneous solutions to serious problems

Abstract


In order to investigate the possibilities of taking responsibility for what happens by chance in life, we have taken as an object of analysis the movie Diogo e Fátima: desautorizando o sofrimento (Audiovisual Quark, 2008). Based on the analysis of this mother and son’s story, we show how what we have named Fátima effect takes place. This effect is the establishment of an ethical statute for the body as a result of a singular way of interpreting life’s eventuality. The conclusion points out that the way Fátima conducts her life illustrates the paradigm by which Lacan interprets the feminine position, which is marked by the exception. By living in a coherent way with the globalization, Fátima has increased her personal responsibility, and while doing that, has invented her life, opening a space where her son didn’t need to play the role of a fragile victim of a tragic destiny.

Keywords: psychoanalysis, genetics, body, interpretation, pos-modernity.

 

Introdução

No presente trabalho investigamos a maneira pela qual uma pessoa pode se responsabilizar pelo encontro com o acaso. Para tal fim, tomamos como objeto de estudo o filme Diogo e Fátima: desautorizando o sofrimento. Como membros do Corpo de Formação do IPLA, nós tomamos a história dessa mãe e de seu filho para mostrar como se instaura o que denominamos Efeito Fátima, o estabelecimento de um estatuto ético ao corpo como resultado de um modo singular de interpretar as contingências da vida.

O estatuto ético ao qual nos referimos neste trabalho está ligado ao princípio responsabilidade descrito pelo filósofo Hans Jonas (1979). Segundo este princípio, o sujeito deve se responsabilizar não só pelo que é compreensível, mas, também, frente o acaso e o desconhecido. O autor aborda a necessidade de uma ética que ultrapasse as leis morais.

Decidimos estudar este documentário, produzido pela Audiovisual Quark, porque consideramos que Fátima e Diogo vivem de modo a testemunhar que, mesmo quando nos surpreendemos com uma alteração física, é possível abdicar da segurança que o contorno corporal fornecido por um diagnóstico dá a quem não conseguia compreender suas manifestações.

Idealizado por Jorge Forbes e por Mayana Zatz, o filme é resultado da parceria de pesquisa entre o Centro de Estudos do Genoma Humano – CEGH/USP e o Instituto da Psicanálise Lacaniana (IPLA), cujo projeto é intitulado “A desautorização do sofrimento padronizado na multiplicidade dos corpos”. Insere-se na linha de trabalhos nos quais Forbes vem desenvolvendo a hipótese de “desautorizar o sofrimento” prêt-à-porter. (Forbes, 2008a e 2008b).

Para o autor, um fenômeno típico do nosso tempo é a comunicação ao paciente de um prognóstico científico anunciando-lhe uma doença da qual ele ainda não sofre. Passado um primeiro momento de raiva, quase sempre o sujeito escolhe alienar-se no sujeito-suposto-saber do imaginário social, ou, em outros termos, em um sofrimento prêt-à-porter (Forbes, 2008b) O autor aborda as conseqüências do sujeito se restringir a padrões de sofrimento quando um diagnóstico genético o defronta com o inesperado. Em suas palavras:

Primeiro, resignando-se, ele antecipa o sofrimento e facilita por esta antecipação o progresso da doença anunciada. Segundo, do lado da família, justaposta à resignação, surge a compaixão que, sob sua face de virtude, esconde o vício da acomodação indiferente, congelando a situação em um dueto dor-piedade. É por que intitulamos nossa pesquisa ‘Desautorizar o sofrimento’, entenda-se, o sofrimento padronizado. (Forbes, 2008a).

O documentário foi feito para mostrar o modo singular com que uma mulher chamada Fátima e seu filho Diogo, portador de uma miopatia geneticamente mediada do tipo Duchenne, inventam o seu cotidiano em face à diferença genética do rapaz. Realizado entre os anos de 2006 e 2008, nas cidades de São Paulo (SP) e de Natal (RN), essa produção, cuja duração é de vinte minutos, foi dirigida por Sérgio Zeigler e teve como assistente de direção Mariana Amaral. O roteiro é de Jorge Forbes e a trilha sonora de Arvo Pärt e de Cliff Martinez.

Nos vinte minutos de filmagem, ficamos conhecendo a vida de Fátima e de seu filho. Ela nasceu na zona rural do Rio Grande do Norte e, atualmente, mora em Natal. É fundadora de uma associação de portadores de doenças degenerativas em sua cidade.

É a mais velha de dez irmãos. Sua mãe morreu no parto do caçula e ela adotou os nove irmãos, por quem se responsabilizou. Negou pedido de casamento de um fazendeiro rico, mesmo sabendo que ele poderia auxiliá-la a criá-los. Ao invés disso, preferiu viver um romance com o pai de Diogo, nas suas palavras, casado, negro e pobre, que conheceu ao vir trabalhar na capital. A mulher valorizava muito a possibilidade de fazer trocas com este homem. Segundo ela, ele sabia tudo da capital, enquanto ela conhecia tudo do interior. O jovem teria investido pesado em Fátima, presenteando-lhe com alimentos e revistas.

No momento em que o filme foi produzido, Diogo cursava Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Tinha muitos amigos e relacionamentos amorosos eventuais. Em poucas palavras, podemos dizer que sua vida é muito parecida com a de outros jovens da mesma faixa etária que não são portadores de doenças degenerativas.

Diogo mostra-se imune ao que foi denominado no projeto “Desautorizando o sofrimento” de “vírus” R.C. (resignação e compaixão). Assume uma posição subjetiva diferente da maioria dos pacientes portadores de doenças genéticas degenerativas, que tendem a reações marcadas pela revolta, pela negação, ou, ainda, pela resignação. Por conta disso, Jorge Forbes e Mayana Zatz decidiram documentar o caso de Diogo na tentativa de apreender como, espontaneamente, é possível para alguém se responsabilizar por sua diferença genética.

 

O encontro de Diogo com o acaso

A doença degenerativa que acomete Diogo, distrofia muscular do tipo Duchenne, é transmitida pelo cromossomo ligado ao X (recessivo) e tem seus sintomas iniciais insidiosos nos primeiros cinco anos de vida. Trata-se de um defeito geneticamente transmitido em dois terços dos casos. Em um terço dos casos, é causado por uma mutação nova, sem risco de recorrência. O gene mutado codifica uma proteína, a distrofina, a qual é significativamente reduzida ou ausente em seus portadores. A distribuição dos seus sintomas segue a seguinte ordem: primeiramente, é afetada a musculatura proximal, depois, a cintura escapular; evolui para a musculatura dos braços e, finalmente, para os músculos respiratórios. Pode levar a cardiomiopatia – doença do músculo do coração – mais freqüentemente focal da parede posterior do ventrículo esquerdo, levando a insuficiência cardíaca e freqüentemente distúrbios de condução elétrica do coração, que podem aparecer em conjunto ou como única característica diagnóstica. A progressão é rápida. Se não houver suporte de ventilação assistida, a morte ocorre após quinze anos do aparecimento dos primeiros sintomas. (Passos Bueno et alli, 1993; Zatz et al,1992; Zatz et al, 1995; Zatz et al, 1996).

De acordo com a versão de 2008 do Current Medical Diagnosys and Treatment, como se vê no excerto que se segue, se, por um lado, não há tratamento médico para este tipo de doença degenerativa, por outro, destaca-se a necessidade de encorajar o paciente a levar uma vida ativa. Diogo se destaca de modo exemplar no cumprimento desta recomendação.

Não há tratamento específico para distrofia muscular, mas é importante encorajar os pacientes a levar uma vida tão normal quanto possível. Sugere-se a utilização de Prednisona (0.75 mg/kg/dia), o que levaria a um aumento da força muscular e que funciona principalmente em rapazes com a distrofia de Duchenne, mas os efeitos colaterais devem ser monitorados. Comenta-se que se deve evitar descansos prolongados na cama porque o sedentarismo freqüentemente potencializa a evolução da doença. Os procedimentos fisioterápicos levam a uma melhora. (McPhee, Papadakis & Tierney, 2008, p. 895, tradução nossa).

No caso de Diogo, as manifestações da distrofia de Duchenne começaram a ocorrer na primeira infância. Uma alteração no músculo da panturrilha do menino permitiu a um tio materno identificar a semelhança da perna do sobrinho com uma foto presente em um livro de medicina.

Por conta disso, recomendou a sua irmã que o levasse para fazer exames que confirmassem a hipótese da presença da doença.

Os resultados indicaram que Diogo é portador da distrofia de Duchenne, o que explicou o fato de apresentar quedas. Foi perdendo a capacidade de marcha gradativamente. Observa-se que existem sinais de fraqueza muscular dos membros superiores e de sua musculatura proximal, o que implica na dificuldade de sustentação dos braços.

A evolução da distrofia de Diogo manifesta-se em um ritmo mais lento que o descrito por McPhee, Papadakis e Tierney (Op.cit.). Pode-se dizer, portanto, que a vida de Diogo permite levantar a hipótese segundo a qual o modo como uma pessoa interpreta sua doença influencia na velocidade de sua instalação e na gravidade de sua expressão.

 

Efeito Fátima: evitando a tragédia

A nosso ver, por lidar com sua diferença genética, Diogo consegue criar um modo de viver que não se restringe ao sofrimento padronizado. Isso se deve, em grande medida, à interpretação que Fátima deu às particularidades de seu filho.

Quem é Fátima? É uma mulher que se responsabiliza por seu desejo. A sua excentricidade frente à moral social não a assusta. Ela sustenta a singularidade de suas decisões e assume o risco de suas ações. Assim, recuperamos na passagem a seguir, o momento em que Fátima discorre a respeito de seu modo de encarar a diferença genética de Diogo: “Compreendo que existem jeitos diferentes de ser, de estar, de conviver, de fazer. Não necessariamente todos do mesmo jeito, tudo igualzinho. Nem que a gente queira, nem para os ditos normais”.

Escutar Fátima pontuar a existência de diversos modos de ser e de estar no mundo nos leva a perceber que ela vê a vida de modo análogo ao da pós-modernidade. Ela referencia-se em uma época em que, de acordo com Forbes (s.d.), não mais existe a ilusão na existência de alguém ou de algo que portaria um saber a partir do qual a pessoa pode conduzir sua vida.

Tal modo de compreensão faz com que as contingências que cercaram o nascimento de seu filho tenham sido acatadas por ela como parte integrante do perigo de viver. Fátima não utiliza soluções do bom senso para conduzir sua vida. Ela busca soluções próprias para os impasses de seu desejo. Para os seus pares (amigos e parentes), ela narra o que decidiu fazer.

Pelo fato de não tomar os outros como oráculos que saberiam coisas a respeito de seu futuro, Fátima pode intervir em seu próprio futuro, o qual não é compreendido por ela como uma sentença. O futuro é, para Fátima, uma possibilidade pela qual ela se responsabiliza. Seu modo de agir permite estabelecer um paralelo com o que Forbes apresenta a respeito do drama e da tragédia.

Segundo Forbes, existe uma diferença radical entre os personagens de uma tragédia e os de um drama: os primeiros participam de um enredo cujo roteiro já está traçado, ao passo que os outros não estão fadados a seguir o destino marcado.

Em relação à sua escolha amorosa, Fátima mostrou-se capaz de sustentar um encontro. Não visou a obter benefícios pessoais, financeiros ou sociais. Seu parceiro foi eleito a partir dos misteriosos meandros de seu desejo. Sustentou sua decisão a despeito das contingências da vida do pai de Diogo.

Fátima poderia ter se deixado conduzir pela lógica da moral e compreender que o casamento do homem que amava com outra mulher significaria obrigatoriamente a desistência de continuar seu romance com ele. Nesta perspectiva, Fátima se colocaria na posição de um herói trágico, se assujeitando ao “destino”.

Porém, Fátima inventou um jeito de continuar seu romance: engravidou. Assim, ao invés de cumprir um destino estabelecido pelos outros, representado pelo bom senso, optou por uma posição análoga a do protagonista de um drama.

O laço que ela estabelece com seu filho permite que ela compreenda que Diogo tem uma doença; não se restringe a ser um doente. Levando-se em conta que “é lícito, para o animal, identificar o ser e o corpo, (e) não o é para espécie humana. Isto concerne ao estatuto do corpo falante: o corpo não avulta do ser, mas do ter”. Portanto, pode-se afirmar que essa mãe humanizou seu filho, que lhe permitiu encontrar um corpo para além da possibilidade de captura de um diagnóstico (Miller, 2004).

 

A propagação do Efeito Fátima

O Efeito Fátima ocorre a partir da posição assumida por uma mulher cujo modo de vida surpreende. Fátima conduziu a educação de seu filho sem desconsiderar a existência da doença genética, mas, também, sem fazer da diferença genética de Diogo algo que lhe autorizasse a se resignar na posição de vítima. Isso se salienta na seguinte passagem:

“Eu dizia: Diogo você caiu, os outros meninos não caem muito, mas crianças caem. Porque você tem um problema, uma doença, por isso, você cai mais. [...] Uma vez ele olhou para mim e me perguntou: Eu vou ficar andando sempre devagar? Eu disse: Talvez, você vai ficar andando sempre devagar e eu vou estar andando devagar, esperando por você, caminhando junto com você.”

A posição de Fátima indiciada em tal passagem cria um lugar desde onde Diogo pôde se localizar. Por considerar que a diferença genética é um detalhe que o diferencia, mas que, por si só, não lhe confere uma sentença, Fátima instaurou a necessidade de que Diogo interpretasse sua vida. Diogo que aos olhos de sua mãe “é a cara do pai”, aquele que sabia muitas coisas, pode, independentemente de sua diferença corporal com o pai, enganchar-se com o saber.

Diogo honrou o “olhar” que sua mãe lhe dirigiu a despeito do diagnóstico clínico. Isso repercute no modo como conduz a sua vida: na relação que estabelece com seus amigos e, também, na sua implicação com o saber. A respeito da decisão por continuar sua vida acadêmica, Forbes afirma: “No tempo em que, os que se achavam doentes, se preparavam para um triste fim, Diogo insistia no começo, com isso, retardando o fim”.

O modo como Diogo se posiciona diante de sua diferença genética, pode ser depreendido na passagem em que, ao ser interrogado a respeito de seus relacionamentos amorosos, o rapaz responde como, muito provavelmente, responderiam muitos outros jovens de sua idade: afirmando que prefere “ficar” a manter “um relacionamento sério” porque “não quer se prender a ninguém”. Agindo assim, Diogo não delega à sua diferença genética a responsabilidade de conduzir sua vida, ao contrário, chama-a para si.

A posição que Diogo e Fátima ocupam repercute no laço social. Na família e nos amigos de Diogo a compaixão inexiste. Como conseqüência disso, em Diogo não existe resignação. No vazio que surge na ausência desses dois modos pré-estabelecidos para lidar com a diferença genética, surge a possibilidade de um laço pautado pelo amor.

As pessoas que convivem com eles são levadas a tomarem atitudes que dão conseqüência ao desejo de estarem com Diogo. Assim, por quererem que ele participasse de uma ida à praia, seus amigos decidiram carregar Diogo nos próprios braços, atitude autorizada pela mãe, que se baseou na confiança nos amigos e na felicidade expressada por seu filho para consentir o passeio. Vale a pena retomar a narrativa de Fátima:

“Eu me lembro que Diogo foi para um passeio numa praia, que tinha muita areia e eu perguntei aos colegas: como é que vocês vão fazer? E eles falaram que isso não era problema não. Nós somos muitos, quatro levam o Diogo no braço numa parte e quatro leva o Diogo mais para frente e olhei para o Diogo, e ele estava muito satisfeito em ir apoiado no braço dos colegas. Então eu estava tranqüila. Era aquele o jeito.”

Dessa forma, podemos entender o Efeito Fátima como algo que incide sobre a possibilidade de as pessoas reconhecerem e se responsabilizarem pelo seu desejo. Foi isso que ela fez ao decidir ter um filho e conduzir a formação de Diogo tal como o fez. Foi isso que Diogo fez ao decidir ingressar em um curso universitário. Foi isso que seus amigos fizeram ao carregarem-no pela praia.

O efeito Fátima não incide apenas no modo de interpretar os fatos presentes e passados, diz respeito também ao futuro. Salientamos a passagem do documentário em que Mayana Zatz informa à família de Diogo os últimos avanços das pesquisas para encontrar a cura da distrofia. Ressaltou uma pesquisa divulgada por uma equipe italiana que instaura a possibilidade de rápidos avanços no tratamento dispensado às distrofias.

O posicionamento da família diante de tal notícia pode ser ilustrado pelas palavras de Artur, primo de Diogo:

“Mas o que eu acho que é fundamental para essa família, e talvez tenha sido isso que tenha trazido as autoridades que temos o prazer de ter aqui hoje, a Dra. Mayana e o Dr. Jorge , foi esse sentido e essa convicção da necessidade de que você não pode, a todo o momento, querer que aquele resultado venha numa velocidade mais rápida do que aquela que ele pode vir. Porque o caminhar da ciência não é o caminhar que aquelas pessoas que precisam dela representa. Então, eu acho que essa filosofia do Carpe Diem, por assim dizer, de viver a cada dia, que fez com que a gente tivesse aqui hoje falando da nossa felicidade mais do que o nosso problema”.

Os familiares não interpretam a possibilidade de cura como uma salvação ou reconstrução de um passado glorioso, mas como um desafio para o qual será necessário, como afirma Fátima, se apropriando do termo de Forbes, ressignificar suas vidas, do mesmo modo que já o fizeram por ocasião do diagnóstico.

Para Diogo a cura implicará no desafio de reaprender a andar, a jogar bola etc. Ou seja, ele encara a possibilidade de não ser mais portador de uma distrofia apenas como mais uma contingência que pode (ou não) fazer parte do futuro. Assim sendo, para ele, mesmo uma cura é algo que requer uma interpretação, responsabilidade subjetiva.

 

Considerações finais

Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher pois – já arrisquei o termo, e por que olharia eu para isso duas vezes? – por sua essência ela não é toda (Lacan, 1972-73)

O modo como Fátima conduz sua vida é paradigmático. Ela encarna a explicação de Lacan para quem mulheres não fazem conjunto. Em certo sentido, ela é fruto da globalização. Ela é um ícone de um “tempo no qual não há padrões fixos do que se deve fazer, ou do como se pode ter prazer corretamente” (Forbes, 2008c). Ela não recuou frente ao fato de que a inexistência de padrões “aumenta muito a responsabilidade de cada um de com quem está, em que lugar, e com o que” (Forbes, 2008c). É como se Fátima espontaneamente tivesse descoberto que “o que importa é retificar a posição de uma pessoa em relação ao radical desconhecimento do real [...] levando-a a inventar um futuro e sustentar esta invenção”. (Forbes, s.d.).

Uma clínica do excesso defronta-nos com o fato de que frente ao inesperado não há outra saída a não ser responsabilizar-se. Diogo e Fátima mostram-nos como fizeram isso: 1º pelo reconhecimento da existência de uma diferença genética que acarreta conseqüências para suas vidas; 2º pela recusa, da parte da Fátima, de assumir uma posição de compaixão pelo sofrimento de um filho doente e, da de Diogo, a de resignação de um filho cuja identidade não transcendesse a doença; 3º pelo estabelecimento de um laço amoroso como forma de inventar um futuro que inclua os excessos.

Examinar as soluções espontâneas que Fátima e Diego encontraram para um problema gravíssimo nos permitiu aprender uma importante lição clínica. Ao abrir mão das expectativas de se adequar a padrões, Fátima nos ensina a respeito do desejo do analista, “o de obter a diferença absoluta” (Lacan, 1964).

Enfim, uma responsabilização amorosa que permite tirar a consistência do Outro, esvaziando o diagnóstico clínico do peso de uma barreira que impossibilitaria a invenção de um futuro para além da doença. No qual, “só pode surgir a significação de um amor sem limites; já que está fora dos limites da lei, onde somente ele pode viver” (Lacan, 1964).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Texto recebido em: 13/06/2008
Aprovado em: 26/10/2008