O
trabalho de Ana Paula Sartori introduz os fundamentos do conceito
de erotomania. No caso Schreber, Freud (1911) fala da posição
feminina referindo-a ao seguinte fenômeno elementar: “afinal de
contas, deve ser realmente muito bom ser mulher e submeter-se ao
ato da cópula”. Se, para Clérambault (1920), a erotomania é
uma característica essencial da psicose feminina, Freud a
trabalha inicialmente no caso de um homem. A erotomania diz
respeito ao gozo. Porém, até o último ensino de Lacan, a
erotomania se restringia à psicose.
A
questão que circunscreve esta conversação é a seguinte: como
se estende à neurose o conceito de erotomania usado na psicose?
Como tratar através da palavra o que não é possível de ser
limitado pela própria estrutura? Enquanto inserida na linguagem,
a via da demanda, do pedido, é sempre insaciável.
O
passo requer um deslocamento do eixo do complexo de Édipo para o
do complexo de castração.
No
caso apresentado por Cristina Antunes, ela faz uma equivalência
entre o ato de comer e a demanda, enquanto demanda de uma palavra
de amor. Do ponto de vista do gozo, ela aponta que se trata de uma
certa plasticidade na relação da demanda com o falo.
Qual
é a maneira de se tratar disso? Cristina mostra que a interpretação
deve tomar a via do insaciável.
Qual
seria o efeito disso no “caso Dora” apresentado por Rosa? Uma
ênfase da paciente na relação com a mãe, na ilusão de que a mãe
teria sido um objeto de desejo para o pai. É preciso questionar
essa condição da mãe. Para isso, devemos entender que o que
chamamos de caso clínico é algo diferente do que poderia ser
considerado como uma história de vida.
Porque
acontece esse efeito? Qual é a questão presente na ênfase da
relação da paciente com a mãe? Qual é o problema clínico a
ser tratado aí? Trata-se de uma questão nova sobre a
sexualidade, razão para se buscar um analista e não outra coisa.
No
caso apresentado por Rosa, trata-se da falta de um lugar simbólico.
Onde recai essa falta? Na vida amorosa da paciente, em não se
fazer amada. Os meninos não estão nem aí para ela. Eles a
rejeitavam? Por mais que tivesse meninos, ela nunca se satisfazia.
Ao contrário das amigas, não transava. Isso certamente faz oposição
à posição da mãe. Dora não vai ser a outra nunca!
Onde
se apresenta a insatisfação? No excesso! Há ainda a tristeza e
os cortes que ela efetua sobre o próprio corpo e que produzem um
certo alívio, um alívio da angústia porque, desse modo, o
sujeito pode se colocar como dono do próprio corpo.
Trata-se
aqui de um modo sintomático atual de se relacionar com o corpo.
Como a psicanálise pode atingir o corpo por meio da palavra?
Há
uma demanda de amor insaciável e nenhuma satisfação. O corpo se
apresenta como alguma coisa que não consegue se saciar. Podemos
entender o seu apelo por amor como um apelo por reconhecimento: me
ame, isto é, me reconheça como alguém. Entre o homem, marido da
mãe, e o pai há um ato simbólico de reconhecimento. Na ausência
do reconhecimento, ela insiste em pedi-lo e isso se expressa através
desses pequenos cortes em seu corpo. Desse modo, esta Dora entra
em contato com seu corpo e daí podem decorrer dois caminhos: a
sexualidade ou o auto-erotismo. Como ela não percorre o primeiro,
então... resta-lhe o auto-erotismo.
A
paralisia de Elisabeth Von R., a tosse da “Dora de Freud” –
estes sintomas teriam hoje essa forma? Para Freud, o sintoma
comparecia como demanda, mensagem onde deve ser incluído o endereçamento
ao Outro. O que este “caso Dora” nos mostra é que, se essa
mensagem não é acolhida, ela retorna sobre o corpo como gozo
devastador. Se o Outro não existe, a demanda é insatisfatória.
Se não há Outro que acolha, o retorno sobre o corpo é auto-erótico,
ou seja, ele se dá sob a forma de um ataque ao próprio corpo.
A
articulação em jogo é a do narcisismo com o auto-erotismo. Sem
ter o que perder, por onde anda a mulher na saída do complexo de
Édipo? Nos tempos de Freud, ser freira era uma maneira de negar a
sexualidade. Na atualidade, há a obesidade, os cortes no próprio
corpo e o uso de drogas. Todas são saídas para a dificuldade de
se deparar com um gozo auto-erótico.
Não
correndo nenhum perigo, a paciente se coloca em diversas situações
onde corre perigo, um perigo simbólico. Geralmente, o perigo não
está simbolizado, mas situado em um curto-circuito de gozo não
direcionado ao Outro. Há um uso do corpo para tentar diminuir o
mal estar por meio da violência ao próprio corpo. Neste uso, o
parceiro não está incluído. E é a articulação da teoria do
narcisismo com o auto-erotismo que nos permite compreender como
isso se torna possível.
O
analista precisa direcionar a demanda para que ela venha a sofrer
recortes simbólicos, para que as bordas sejam delimitadas, de
modo que o sujeito tenha condições de suportar a impossibilidade
de satisfação. Parece que a intervenção feita por Rosa abriu
uma perspectiva sobre o gozo materno. Permitiu que a paciente saísse
do circuito da satisfação-insatisfação, da contabilidade, que
a levava a querer muito mais do que recebia. Essa lógica fálica
precisava ser quebrada, pois ela requer a presença da medida.
A
insatisfação própria à erotomania é solucionável, mas não
é modificável. É preciso introduzir um “assim está bom” no
lugar de ficar tentando corrigir a insuficiência pelo caminho da
questão fálica, ou seja, tentando incluir algum objeto.
O
que este caso nos mostra é que, quando todo mundo pula fora, isso
é indicativo de que não há Outro.
Uma
outra via para abordar esses novos sintomas é a do complexo
caracteriológico, que Lacan tratou em Complexos familiares (1938).
Qual
é a incidência do significante no corpo?
A
incidência do significante no corpo tem dois efeitos:
Segundo
Miller (1995, p. 99), o essencial “não é que o significante
tenha um efeito de mortificação sobre o corpo, é que o
significante é causa de gozo, é que o significante tem uma incidência
de gozo sobre o corpo”. Portanto, na medida em que o sujeito tem
um corpo, não se trata apenas do gozo do corpo, mas também do
gozo da linguagem, do gozo do corpo habitado por um sujeito
marcado pelo significante. No ser falante, “o gozo do corpo é
ligado ao significante como sua conseqüência”.
Em
relação ao mais-de-gozar, os sintomas da atualidade são “o
que não vai bem” em relação ao gozo. O mais-de-gozar precisa
estar articulado em um discurso. É a isso que o discurso analítico
se propõe. A clínica atual mostra algo em relação ao corpo,
mostra questões que tentam localizar um gozo à deriva.
Desde
Arcachon (Miller,
1997), o diagnóstico não se restringe mais à neurose, psicose e
perversão. Ele passou a incluir uma gama de psicoses e de nós de
gozo.
O
crack é uma substância
cujo efeito é o de promover um rápido curto-circuito. Os
pacientes buscam objetos concretos: o próprio corpo, a comida...
Como colocar esses objetos demasiadamente concretos na via do
semblante? Ainda uma outra questão importante: qualquer objeto
vale?
A
neurose caracterial se distingue pela existência de indivíduos
agarrados aos objetos do curto-circuito autoerótico. Estes
objetos condensam o gozo do sujeito de ser tratado como exceção
pela mãe. O único momento em que fomos exceção foi aquele em
que, ao nascer, fomos amparados pela mãe.
Diante
do empobrecimento da nomeação, há uma demanda por palavras que
nomeiem, que introduzam outros circuitos pulsionais, que separem.
Referências
bibliográficas:
CLÉRAMBAULT, G. G. (1920) “Le
Syndrome érotomaniaque”,
In: L’Érotomanie,
Paris, Les Empêcheurs de penser em rond, 2002.
Freud,
S. (1977) (1911) “Notas psicanalíticas sobre um relato
autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia
paranoides)”, In: Obras Completas. RJ: Imago Ed.,
Vol. XII.
Lacan, J. (1938/1987) Os
complexos familiares na formação do indivíduo – ensaio de uma
função em psicologia. RJ: Jorge Zahar Ed.
Miller,
J.-A. (1995).
O osso de uma análise.
EBP-BA: Salvador.
_________. (1997/2003). “La conversation de Arcachon”, In: Los
inclasificables de la clínica psicoanalítica. Buenos Aires:
Paidós, p. 197-414.
_________. (1997). A
conversação de Arcachon – Os casos raros, inclassificáveis da
clínica psicanalítica. Biblioteca Freudiana
Brasileira: SP, 1998.
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