Isepol - Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana

O ADVENTO DA CIÊNCIA

O ADVENTO DA CIÊNCIA
Segmento da Tese de doutorado de Maria Cristina da Cunha Antunes:
"O discurso do analista e o campo da pulsão: da falta de gozo ao gozo com a falta" -
UFRJ/PPGTP/RJ/2002.

Para se compreender a operação em jogo na ciência moderna é necessário traçar um paralelo entre esta e o pensamento antigo e o medieval. Koyré (1991) será nossa referência. Ele trata a ciência moderna como uma revolução urdida na própria trama da evolução do pensamento científico, explorando as vicissitudes por que passa a razão, ou o pensamento humano, no engendramento dessa nova operatória a que chamamos ciência moderna. Mapearemos os passos, os elementos que constituirão a teia que oferece as condições para o surgimento de uma nova operatória no campo da ciência.
Comecemos por situar o pensamento moderno. Koyré aponta o pensamento da Renascença como elemento de passagem ao moderno, pois substitui o teocentrismo medieval pelo ponto de vista humano, os problemas metafísico e religioso pelo problema moral. Essa configuração ainda não é o nascimento do espírito moderno, mas a expressão do esgotamento do espírito da Idade Média (KOYRÉ, 1991:10), que a obra de Nicolau de Cusa explicitaria muito bem: se, por um lado, ele é teocentrista e sua obra sustenta-se numa teologia, por outro, sua concepção teológica de um universo fechado, hierarquizado, ordenado a partir de Deus, não o prende mais. Sua concepção do universo é menos determinada, mais dinâmica, mais moderna (KOYRÉ, 1991:19). Para Koyré, a obra de Maquiavel já nos apresenta a modernidade sustentada pela razão, vez que nenhum dos problemas da Idade Média (Deus, salvação, relação entre o mundo dos vivos e o além, o fundamento divino do poder) está ali presente. Só há uma realidade: o Estado, um fato: o poder, e um problema: como afirmar o poder do Estado. Temos a expressão do pensamento moderno: a razão é a condição do sujeito.
A contribuição da Idade Média: as heranças platônica e aristotélica relidas à luz do Cristianismo
O surgimento do Cristianismo – noção de um Deus único e hegemônico –, na Idade Média, é um elemento importante para o advento da modernidade. Outro aspecto relevante da Idade Média é a retomada, à luz da teologia cristã, da herança grega, principalmente via Platão e Aristóteles. A existência de um Deus único, criador e pai, eram concepções inexistentes no pensamento antigo. Analisaremos brevemente a influência de Platão e Aristóteles no pensamento medieval, solo onde emerge a ciência moderna.
Santo Agostinho identifica o Deus-Bem de Platão ao Deus Criador do Cristianismo, que constitui o Bem, eterno e imutável. A alma, como palavra-chave do platônico medieval, representa a perfeição e é nesta direção que a razão, o pensamento, deve se voltar, pois é lá que reside a verdade e não nos objetos do mundo sensível. A verdade das coisas sensíveis está na sua conformidade com a essência eterna de Deus, objeto do verdadeiro saber. O pensamento deve ser conduzido às idéias de perfeição, de imutabilidade e não ao mundo dos sentidos. Assim, o platônico é levado ao número, à matemática enquanto representantes de um saber imutável, eterno, independente do mundo físico.
Ao retomar Aristóteles, Santo Tomás de Aquino apresenta a existência do mundo como derivada de Deus e criada por ele. Existência que, uma vez concebida, torna-se uma existência autônoma, podendo tornar-se objeto de estudo.
Apesar da orientação para o mundo, em oposição à orientação para a alma do platônico, o pensamento aristotélico reinstala no mundo as noções de perfeição, de imutabilidade. Sob este ângulo, os pensamentos platônico e aristotélico não abrem mão das idéias de perfeição e de imutabilidade, guias do pensamento antigo e medieval. Se o primeiro localiza a perfeição no mundo das idéias, cujo acesso é a alma, o segundo a reencontra no mundo, na natureza.
Aristóteles interessa-se pelo mundo, ou seja, pelas ciências naturais, uma vez que o mundo não reflete a perfeição divina; ele solidificou-se: é uma natureza ou um conjunto ordenado e hierarquizado de naturezas, estável, firme, com existência própria, que a possui por si próprio (KOYRÉ, 1991:35). Há princípios que ordenam e, através deles, os seres formam um todo hierarquicamente ordenado. No universo, os corpos são distribuídos e dispostos numa certa ordem, segundo sua própria natureza. Na física aristotélica, há um lugar para cada coisa e uma coisa para cada lugar. O conceito de lugar natural exprime essa exigência teórica no campo do pensamento aristotélico e baseia-se numa concepção estática de ordem (KOYRÉ, 1991:158). Nesse sentido, um corpo fora do seu lugar é efeito de alguma violência, ou seja, todo movimento implica numa espécie de desordem cósmica, numa perturbação do universo como efeito direto de uma violência ou esforço do ser no sentido de recuperar a ordem e o equilíbrio perdidos. A ordem, portanto, constitui um estado durável que tende à infinita perpetuação, não havendo a necessidade de se explicar o estado de repouso de um corpo no seu lugar natural, vez que sua própria natureza já o faz.
Do mesmo modo, o movimento é o ser de tudo que não é Deus, é um estado transitório: cessa quando o corpo atinge seu lugar natural. Mover-se é mudar em relação a si mesmo e aos outros e implica uma mudança no ser. Temos aqui a concepção de um ponto fixo, imutável, como centro do universo. Se o repouso é o estado natural de um corpo, o movimento precisa de uma causa, um motor que o mantenha movendo-se. Em Aristóteles, a noção de movimento é imprescindível da ação desse motor, que seria a sua causa.
Aristóteles rejeita o espaço vazio (o da geometria), o vácuo, vez que destrói a concepção de uma ordem cósmica, porque esta se opõe à idéia de lugares próprios para cada corpo, conforme sua natureza. O vácuo é impensável no campo dos corpos reais. Só os corpos geométricos podem ser colocados num espaço geométrico. Assim, o físico examina as coisas reais; o geômetra, as razões em função de abstrações. Nessa perspectiva, Aristóteles sustenta a disjunção entre a geometria e a física: é impossível aplicar um método e um raciocínio puramente geométricos ao estudo da realidade física (KOYRÉ, 1991:161). Conseqüentemente, a matemática, como ciência abstrata, não pode tratar dos seres reais dos quais trata a física, cuja sustentação está na experiência, a partir da percepção dos fenômenos. A física aristotélica não se preocupa com a precisão ou a quantificação dos fenômenos (preocupação da matemática), mas com as qualidades, com a diversidade que aparece à experiência sensível do cientista.
Resumindo, há dois grandes eixos na ciência aristotélica: a noção de um universo ordenado e hierarquizado, e o impedimento da aplicação da matemática ao seu estudo. Estes dois pilares da ciência antiga, interpretados pela Idade Média, terão de cair para que a ciência moderna seja possível. A obra da Renascença foi a destruição da chamada “síntese aristotélica”, que é a interpretação, realizada pela Idade Média, do Cosmo grego à luz do cristianismo.
O Cosmo grego
A ciência surge na Grécia quando o homem separa-se do Cosmo, provocando a desumanização deste (KOYRÉ, 1991:81). Até então, homem e universo formavam uma unidade indivisível em que as características do homem e do universo eram iguais. É possível traçar um paralelo dessas referências com a análise que Freud faz em "Totem e tabu" acerca do animismo, definido enquanto um sistema de pensamento que concebe todos os elementos do mundo como animados, como possuidores de vida ou de espírito, tal como o homem; um sistema de pensamento onde a ordem das idéias e a da natureza operam num só e mesmo plano no qual as palavras são as coisas (FREUD, 1980, vol. XIII:99, 107).
A separação faz com que homem e Cosmo fiquem em oposição, permitindo a criação de uma cosmologia. Para Koyré, a cosmologia científica inicia-se na Grécia, já que foram os gregos que, pela primeira vez, conceberam e formularam “a exigência intelectual do saber teórico: trata-se de preservar os fenômenos, isto é, formular uma teoria explicativa do dado observável [...] revelar, sob a aparente desordem do dado imediato, uma unidade real, ordenada e inteligível” (1991:81, 82). Essa exigência de inteligibilidade do real, sua matematização, inicia-se pela astronomia.
Sobre este aspecto, interessa-nos somente os pontos comuns entre as várias construções cosmológicas gregas, que nos permitem construir uma identidade sob o termo “Cosmo grego”. Em seu Seminário 8, Lacan enfatiza a “verdadeira obsessão” do pensamento antigo em relação à esfera, à forma circular e, a partir de Empédocles, define a forma esférica como “um ser que é, de todos os lados semelhante a si mesmo, sem limites, que tem forma de uma bola, reina em sua própria solidão, repleto de seu próprio contentamento, de sua própria suficiência” (1991:94). Nesta perspectiva, para os gregos, o único movimento admissível é o circular, movimento perfeito, eterno de um corpo sobre si mesmo – binômio eternidade-perfeição, caro ao pensamento grego.
Para Koyré, a Renascença esfacela esse Cosmo ordenado e hierarquizado que organizou o mundo da Antigüidade e da Idade Média. Nicolau de Cusa teria inaugurado esse movimento ao colocar a Terra e a realidade dos Céus sobre o mesmo plano ontológico e afirmar a indeterminação do universo em oposição à idéia de sua finitude, além de possibilitar sua geometrização (1991:50). Essas idéias abrem caminho para sistemas astronômicos em que o ponto de vista físico substitui o cosmológico. Assim, Copérnico opera a substituição de uma realidade metafísica por uma física ao afirmar que os corpos dirigem-se ao centro porque querem voltar para a Terra e não porque querem voltar para um lugar indeterminado do espaço. Através da astronomia, ele opera, ainda, a retirada da Terra de um lugar privilegiado ao identificar sua estrutura à dos outros astros, atribuindo-lhes o mesmo movimento, circular. Realiza-se aqui o fim da hierarquização do universo: todos os fenômenos podem ser pensados através de relações entre forças físicas.
Kepler, por sua vez, apesar de conceber o universo ainda como hierarquizado, finito e criado por Deus, introduz a idéia, nova, de que o universo, em todas as partes, é regido pelas mesmas leis, estritamente matemáticas. Trata-se da passagem do universo animista para o mecanicista, que abre a possibilidade de sua matematização, ou seja, da busca de leis matemáticas que expliquem os fenômenos. Na perspectiva de Koyré, a geometrização do espaço e a expansão infinita do universo são as premissas fundamentais da revolução científica do século XVII, isto é, da fundação da ciência moderna (KOYRÉ, 1991:52).
A ciência moderna
Galileu se interessa pelas qualidades do mundo sensível e não pela variedade dos fenômenos. Sua obsessão é a redução do real ao geométrico, ou seja, a ultrapassagem da realidade sensível pela construção de leis matemáticas que ofereçam uma inteligibilidade nova aos fenômenos. Ao identificar o espaço físico com o da geometria euclidiana, ele geometriza o universo e formula um novo conceito de movimento que constituirá a base da dinâmica clássica: o movimento retilíneo uniforme. Admitindo o movimento como um estado estável e permanente, Galileu descarta a necessidade da atuação de uma força sobre o corpo para explicar-lhe o movimento, como o fazia Aristóteles, para quem o repouso era o estado natural dos corpos. A possibilidade de aplicação das leis da geometria à mecânica é admitida pela relativização do espaço e do movimento proposta por Galileu.
Se tudo o que existe está submetido às leis matemáticas, Galileu, seguindo a tradição de Descartes, é levado a abandonar o mundo qualitativo. Trata-se de uma “dessusbtancialização” do objeto (MILNER, 1996:33), pela qual a noção de qualidade é banida da natureza, bem como a da obtenção de conhecimento através da percepção, pela via dos sentidos.
Cabe interrogar aqui o papel da experiência na ciência moderna. Koyré distingue experiência e experimentação. Na primeira, trata-se da experiência sensível, ou seja, do que é observado pelos sentidos, pelo senso comum, pela percepção imediata, empírica, dos fenômenos. Na ciência moderna, para Desanti, realiza-se a “unidade da experiência e da matemática” (1995:76), onde a experiência subordina-se à racionalidade. A matemática permite o acesso ao verdadeiro quadro da natureza, do qual a experiência sensível é um efeito. Para Koyré, a experiência na ciência moderna diz respeito ao experimentum (1991:54), que é engendrado pela teoria como uma pergunta, estruturada em linguagem matemática, feita à natureza. Realiza-se, portanto, a aliança entre a matemática e o procedimento experimental, que comporta duas dimensões: explicar e modificar.
Alinhamo-nos a Koyré na sua afirmativa de que a revolução galileana pode ser “resumida no fato da descoberta da linguagem da natureza, da descoberta de que as matemáticas são a gramática da ciência física. Foi essa descoberta da estrutura racional da natureza que formou a base a priori da ciência experimental moderna e tornou a sua constituição possível” (1991:54).
Acompanhando Lacan, no Seminário 3, podemos dizer que o gesto introduzido pela ciência moderna é o de que o significante opera na natureza, ou seja, constitui o mundo da experiência (1999:211).
A ciência da tradição aristotélica aceitava como real o mundo evidente aos sentidos. Com Galileu, introduz-se uma ruptura entre o mundo percebido pelos sentidos e o mundo real, o da ciência, que Koyré define como “[...] a própria geometria materializada, a geometria realizada” (1991:55). Nesta afirmação reencontramos a materialidade e a operatividade do significante engendrando o mundo real, o da experiência.
Há, entretanto, um resíduo da operação da ciência: por um lado, produz-se a geometria materializada, um real formalizado que Koyré chama o real da ciência; por outro, comparece um resto não simbolizado, que emerge como limite ao pensável. A ciência opera numa eterna busca do que escapa à formalização matemática, um ponto residual que Koyré chama de verdade. Ele resume a operação da ciência moderna a partir de dois traços: a destruição do Cosmo grego (a destruição do mundo como estrutura finita, hierarquicamente ordenada e qualitativamente diferenciada do ponto de vista ontológico) e a geometrização do espaço (noção de um universo aberto, infinito, homogêneo, governado pelas mesmas leis universais, a partir das quais as leis dos Céus e da Terra se fundem, tornando interdependentes a astronomia e a física).
Para Koyré, a base da ciência moderna é a introdução do pensamento sem qualidades. Galileu, como Descartes, renuncia ao mundo qualitativo da percepção sensível e da experiência do senso comum, para alcançar a operatória significante que engendra os fenômenos. Trata-se de investigar as leis estruturais traduzidas na linguagem matemática.
Temos um retorno ao platonismo, ao mundo das idéias, das essências eternas? Essa concepção da ciência a reduz ao formalismo?
Podemos responder negativamente a estas questões a partir de três pontos: A via da relação da ciência com a verdade - Ela não é definida pela coerência interna de suas fórmulas. A verdade revela-se na relação entre a pergunta do cientista (o experimentum) e a resposta da natureza, onde sempre escapa algo não definido pela fórmula.
A concepção de teoria da ciência moderna – Nessa concepção o experimentum é a teoria em ato, ou seja, a teoria encarnada. A ciência para Koyré, inclusive a ciência grega, é essencialmente busca da verdade (1991:68, 377). Nesse sentido, ela opera e produz efeitos no mundo.
A operação de matematização, ponto fundamental da ciência moderna e também do platonismo - No sistema platônico a verdade não pode ser atingida pelo estudo dos objetos do mundo sensível, pois não está nas coisas sensíveis, mas na sua conformidade com as essências eternas, objetos do verdadeiro saber (idéias de perfeição, de número), em direção aos quais o pensamento deve conduzir. Há no platonismo um privilégio da matemática como saber por excelência, demonstrativo da perfeição da eternidade, do mesmo. A matemática, no mundo grego, reduzia-se a um mundo distinto do sensível e sua aplicação era interditada à natureza. A introdução da matemática no mundo terrestre - mundo da diversidade, do movimento, do devir – é o gesto que inaugura a ciência moderna. Gesto que, por um lado, implica homogeneizar a natureza (mutável e corruptível) e o universo (imutável) e, por outro, em considerar a concepção de mutável e corruptível como característica desse novo campo homogêneo que, agora, inclui a natureza e o universo sob as mesmas leis (PRIGOGINE & STENGERS, 1997:204).
O gesto da ciência moderna não é, simplesmente, um ato de formalização, mas de criação. O princípio platônico de inteligibilidade é radicalizado e aplicado noutro campo, o do devir, num movimento que cria um efeito novo: a ciência moderna. Neste reviramento, a ciência descobre que a natureza fala e sua linguagem é matemática.
O gesto cartesiano: o surgimento do sujeito moderno e da ciência moderna
Lacan propõe, em “Ciência e verdade”, que a ciência moderna advém de uma mutação decisiva no campo científico, caracterizada por uma mudança radical de estilo e pela forma galopante de sua imisção no mundo. Esta mutação articula-se a uma mudança em nossa posição de sujeito, no duplo sentido “[...] de que ela é inaugural nesta e de que a ciência a reforça cada vez mais” (1998:869, 970). À mutação da ciência corresponde, portanto, uma mudança de posição subjetiva, identificada no gesto cartesiano. No Seminário 11, Lacan afirma que Descartes é responsável pelo aparecimento do sujeito e da ciência no mundo (1990:46, 48).
Em que consiste a operação cartesiana e como ela possibilita o advento do sujeito e da ciência moderna?
O projeto de Descartes é constituir uma nova ciência capaz de produzir um saber verdadeiro, à prova de dúvidas. O trabalho e a originalidade cartesianos advêm do seu método: a dúvida hiperbólica, pela qual duvida de todo o saber constituído até então. É a “mais formidável máquina de guerra contra a autoridade e a tradição” (KOYRÉ, 1992:17), por impor a corrosão de todo o conhecimento advindo da persuasão, isto é, do conhecimento aceito e tomado como verdadeiro a partir de uma autoridade externa (1992:6).
Segundo Koyré, o projeto cartesiano propõe-se a responder ao mal-estar do século XVII, envolto em incerteza e confusão. O Renascimento abalou a unidade política e religiosa da Europa, destruindo a certeza da ciência e da fé medievais, ou seja, a autoridade da Igreja e de Aristóteles. Dessa destruição, surge um mundo em que nada é seguro e em que tudo é possível. Koyré situa aí a instalação da dúvida em relação à verdade: se tudo é possível, então nada é verdadeiro (1992:19). A dúvida, que comparece no século XVII, através do ceticismo, é a herança deixada pelo Renascimento.
Descartes responde a essa posição afirmando a certeza da razão. Seu método consiste em tomar a dúvida e aprofundá-la, radicalizando-a. Transformando a dúvida em instrumento de corte e operando negativamente sobre todos os saberes estabelecidos, isto é, sobre o campo da ciência, acaba por encontrar uma certeza que não se sustenta mais na tradição ou na fé. Koyré considera que a posição de Descartes engendra uma revolução intelectual e espiritual, raízes da chamada revolução científica do século XVII. Trata-se de proclamar “[...] o valor, a força e a autonomia da razão” (1992:33). Utilizando a dúvida como um ácido, Descartes promove o esvaziamento do sujeito de qualquer representação ou conteúdo. O gesto cartesiano inaugura uma certeza: a existência da razão capaz de orientar o conhecimento.
Ciência e teoria do significante
Nossa hipótese é que a dúvida hiperbólica configura a foraclusão de Deus, pensado como Nome-do-Pai, ordenador e fornecedor de sentido do mundo antigo e medieval. A operação da foraclusão de Deus, realizada por Descartes no campo da ciência, insere-se no corte discursivo maior propiciador do advento da modernidade. Trata-se, segundo Dumont, da retirada de Deus do mundo, finalizada pela reforma. Nesta, Lutero expulsa Deus do mundo ao rejeitar a mediação institucionalizada da Igreja católica, onde Deus estava presente através de seus intermediários (DUMONT, 1993:64). Deus deixa de falar no mundo. Sua palavra não é mais a palavra ordenadora do Universo.
Lacan alinha-se à interpretação de que a retirada de Deus do mundo, passo dado pela ciência moderna, faz calar o significado. Os fenômenos da natureza deixam de ser mensagens de Deus aos homens. Nesse lugar comparece o significante no real, extraído e articulado em fórmulas matemáticas. No campo da ciência, a natureza desvenda-se como uma escrita matemática: não significa nada, mas opera no real.
A ciência que se inaugura como moderna sustenta-se na operatória significante. A importância dos objetos sensíveis e sua classificação é substituída por operações da razão que estabelecem objetos, ligando-os através das relações encontradas entre eles e ordenando-os em séries (KOYRÉ, 1992:40).
Esta ciência, assim constituída, tem como condição: A eliminação da diversidade das coisas, ou seja, dos objetos particulares. Trata-se de ultrapassar as qualidades sensíveis dos diversos objetos e perceber a unidade fundamental das coisas cognoscíveis.
A ultrapassagem não apenas de uma ciência de conteúdos, que só acumula objetos e classificações deles, mas também de uma ciência que só considera a forma do raciocínio sem informar nada sobre o objeto, como a lógica formal (GUENANCIA, 1991:15).
A eliminação da distinção entre a forma (palavra) e o conteúdo (as coisas, os significados). Para Descartes, a ciência situa-se num nível mais simples e originário e busca a coincidência entre o espírito (razão) e o objeto (GUENANCIA, 1991).
Quanto à terceira condição, Guenancia aponta que a ciência cartesiana opera num plano que é tanto o do espírito quanto o da coisa. Trata-se de um único plano, onde há uma unidade simples e fundamental: Descartes descobre, nos objetos da matemática, essa transparência entre o espírito e a coisa, permitindo-lhe ultrapassar o dualismo forma-conteúdo (1991:16).
A nosso ver, podemos extrair a interpretação de que a ciência cartesiana coloca-se, portanto, num plano anterior à divisão entre a forma e o conteúdo, ou seja, o da estrutura significante, onde as palavras são as coisas. Assim, a ciência cria e, ao mesmo tempo, conhece os objetos. Ela muito mais inventa que descobre, e a invenção decorre do fato de excluir do seu campo a questão de saber se a idéia pela qual o espírito representa um objeto reflete a verdadeira natureza desse objeto. A ciência não trabalha no campo da representação, mas no do significante e, como efeito da articulação significante, inventa. Nesse plano, todos os objetos são objetos de linguagem, o que os torna aptos a entrar em múltiplas relações. Isto permite à ciência operar com objetos irrepresentáveis, pois, no nível da operação científica, não se coloca a questão se esses objetos têm um referente na realidade. Ou melhor, trata-se de apontar que, neste plano, o referente é um objeto de linguagem que não se confunde com os objetos empíricos.
No limite, podemos dizer que a operação científica, entendida desse modo, cria novas realidades, opera produzindo efeitos que não existiam antes. Lacan, no Seminário 17, aponta essa característica da ciência, que não é a de descobrir objetos, mas a de inventar onde antes não havia nada (1992:150).
Guenancia destaca que a ciência simula “[...] um novo mundo colocando entre parênteses a questão do verdadeiro”, questão considerada aí, a nosso ver, no sentido da verdade enquanto adequação ao referente, ao objeto da realidade, no campo, portanto, da representação. Trata-se de “[...] sair fora desse mundo (da representação) para ver outro inteiramente novo”. Este novo mundo não é um outro mundo, mas, antes, o mundo enquanto outro, ou seja, enquanto verdadeira alteridade em relação à razão (GUENANCIA, 1991:31, 34). Explicita-se aqui o conceito de real, tal como Lacan o conceitua, como limite interno ao simbólico. A razão, como operação significante, produz o real enquanto alteridade, ponto de impossibilidade da ação simbólica (ZIZEK, 1991:64).

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